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Guerra na Ucrânia Rússia

Putin pode usar uma arma nuclear tática na guerra contra a Ucrânia?

Doutrina militar prevê emprego se houver risco existencial à Rússia, o que líder russo citou em discurso

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São Paulo

O risco de o conflito de Vladimir Putin na Ucrânia transbordar as fronteiras e envolver países da Otan, a aliança militar comandada pelos Estados Unidos, tem levado a incômodas especulações acerca do risco de uma Terceira Guerra Mundial, potencialmente nuclear.

Isso ficou mais evidente com a aproximação da guerra da fronteira da Otan, no caso a polonesa, em um ataque no domingo (13), e nos pedidos de Kiev para que a aliança intervenha, o que vem sendo negado.

Míssil Iskander-M, que tem capacidade de levar carga nuclear e está sendo utilizado contra a Ucrânia
Míssil Iskander-M, que tem capacidade de levar carga nuclear e está sendo utilizado contra a Ucrânia - Ministério da Defesa da Rússia - 13.set.21/Reuters

O motivo é óbvio: a Rússia e os EUA herdaram os maiores arsenais de ogivas atômicas da Guerra Fria, e Putin investiu muito na modernização dos meios de emprego dessas armas, como mísseis hipersônicos.

Mas uma pergunta antecede tal cenário, ao mesmo tempo que serve de aperitivo para ele: Putin usaria a bomba contra algum alvo na Ucrânia, na hipótese de sua invasão sair dos trilhos? A resposta, baseada em um documento e um discurso, é um perturbador "teoricamente, sim".

Em junho de 2020, Putin assinou um decreto estabelecendo as condições em que a Rússia usaria seu arsenal nuclear, revisando texto de 2010. Segundo os "Princípios Básicos da Política de Estado da Federação Russa no Campo da Dissuasão Nuclear", há duas hipóteses para isso ocorrer.

Uma é natural: se o país ou algum de seus aliados for atacado com armas nucleares ou de destruição em massa. A outra, nem tanto: "No caso de agressão contra a Federação Russa com armas convencionais, quando a própria existência do Estado estiver sob ameaça".

Pule um ano e meio no tempo e ouça o anúncio da guerra, feito por Putin em 24 de fevereiro. "Para o nosso país, [a Ucrânia se aliar ao Ocidente] é uma questão de vida ou morte, do nosso futuro histórico como nação. Isso não é exagero, é um fato. Não é só uma ameaça bem real a nossos interesses, mas para a própria existência do Estado e de sua soberania."

Em resumo, do ponto de vista retórico, a guerra atual é vista por Putin como uma ameaça existencial, logo o silogismo aponta à eventualidade do uso de armas nucleares. Cabe lembrar que no mesmo discurso ele ameaçou quem interviesse em favor de Kiev de consequências "nunca vistas" e colocou suas forças nucleares em alerta três dias depois da invasão.

Isso não significa, claro, que o líder russo pretenda fazer uso delas. Mas "numa guerra local com um adversário não nuclear, o uso de pequenas armas táticas pode ser uma tentação séria, especialmente se a guerra não estiver indo de acordo com o plano", escreveu David Holloway, da Universidade Stanford, no referencial Boletim dos Cientistas Atômicos. Há relatos múltiplos de problemas enfrentados pela campanha russa, mas não parece ser factível crer que ela já se exauriu.

Armas nucleares táticas são aquelas que visam atacar alvos localizados com uma potência destrutiva muito menor do que as chamadas estratégicas —as tais armas do apocalipse, usualmente montadas em mísseis de alcance intercontinental, que obliteram cidades.

As bombas táticas têm qualquer coisa de 5 quilotons, um terço da potência da ogiva lançada sobre Hiroshima em 1945, a 100 quilotons. Algumas armas, como a americana W76-2, têm potência ajustável de acordo com o alvo desejado —estima-se que ela tenha 5 quilotons, poder equivalente a 5.000 kg de TNT.

Esse armamento não é subordinado a tratados de limitação, como ocorre com as estratégicas —que podem chegar à casa do megaton, ou 1 milhão de toneladas de TNT. Segundo o acordo Novo Start, Rússia e EUA podem ter operacionais 1.600 ogivas estratégicas, prontas para uso.

Mas Moscou, prevendo um cenário de confronto na Europa, tem estimadas 2.000 ogivas táticas em estoque, contra 200 de Washington —metade baseada em aliados da Otan como a Turquia e a Alemanha, que na segunda (14) anunciou que vai comprar novos caças com capacidade de lançar as bombas B61.

A rigor, uma arma tática pode ter qualquer potência e ser acomodada até numa mochila. Assim, ela não destruiria cidades inteiras, mas o rompimento do tabu de seu emprego teria consequências inauditas. O presidente polonês, Andrzej Duda, já disse que se armas de destruição em massa forem usadas na Ucrânia, a Otan terá de repensar sua política de evitar o conflito com os russos.

Tal hipótese foi antecipada na polêmica revisão de doutrina nuclear feita por Donald Trump em 2018, quando apontou a vantagem russa no campo e liberou a construção do modelo tático W76-2 para equipar submarinos. De lá para cá, o arcabouço de mecanismos de confiança mútua nesse campo foi desmontado, com os EUA deixando dois tratados importantes do final da Guerra Fria.

Por fim, há um problema que remonta a 1999, quando a Rússia assistiu horrorizada à aliada Iugoslávia ter a província de Kosovo transformada num país após uma ação militar da Otan. O Conselho de Segurança russo, então secretariado por um obscuro Putin, começou a trabalhar uma doutrina de emprego de armas nucleares que previa a escalada para desescalar.

Ou seja, usar uma arma nuclear de baixa potência para deter um conflito convencional que estivesse indo mal para a Rússia. A doutrina foi aprovada com Putin presidente, em 2000, e revisada nos documentos seguintes. Grandes exercícios passaram a adotar tal simulação, embora pareça que tenham sido suspensas em 2013, com a suposição de que as capacidades convencionais seriam suficientes.

O problema, apontam russos como o especialista em proliferação Nikolai Sokol e o americano Holloway, é que a teoria parece errada: o uso de uma arma mais fraca poderia levar ao uso de uma mais potente pelo adversário, no caso de a Otan entrar na guerra, e assim por diante.

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