Descrição de chapéu Rússia

Entenda a crise entre a Rússia de Putin, a Ucrânia e as forças da Otan

Com ameaça de uso de força, presidente russo busca impor visão estratégica no Leste Europeu

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São Paulo

A grave crise no Leste Europeu que opõe a Rússia de Vladimir Putin à Ucrânia e ao Ocidente, representado pela sua aliança militar, a Otan, pode trazer a guerra de volta ao solo europeu.

Ao mesmo tempo, as negociações em torno do impasse testam duas décadas de política de Putin e talvez seu futuro político —no poder desde 1999, ele mudou a Constituição e pode tentar ficar no cargo até 2036.

Força de reserva ucraniana treina a defesa de Kiev, capital do país, no fim de 2021
Força de reserva ucraniana treina a defesa de Kiev, capital do país, no fim de 2021 - Serguei Supinski - 25.dez.2021/AFP

O presidente da Rússia, que assumiu sobre as ruínas dos dez anos de crise após o fim da União Soviética, trabalhou um plano geopolítico claro. Críticos o acusam de buscar restaurar o império comunista, mas suas preocupações são as mesmas de governantes do maior país do mundo desde tempos imperiais: aumentar a distância entre seu território e os adversários, perdida quando a união caiu, em 1991.

Há outros pontos, como a proteção de russos étnicos que ficaram para trás, e a manutenção da popularidade, que tem na ideia de uma Rússia forte um de seus pilares. O adversário, claro, é a Otan, liderada pelos vencedores da Guerra Fria, os EUA.

Três décadas depois, o Ocidente se vê encurralado pelos russos na Ucrânia, uma crise que Putin tenta resolver com um xeque-mate —ou um ippon, para ficar no judô que aprecia. A Folha resume o caminho que trouxe os dois países com os maiores arsenais nucleares do mundo frente a frente, novamente.

O que está acontecendo na Ucrânia agora? No começo de novembro, Putin deslocou mais de 100 mil soldados e equipamentos para áreas próximas, relativamente, da Ucrânia. O vizinho, os EUA e a Otan o acusaram de planejar uma invasão militar, que ele nega.

Mas o que existe lá que interessa a Putin? Em 2014, o governo pró-Rússia de Kiev foi derrubado (golpe ou revolução, depende de quem conta). Putin percebeu que a Otan e a União Europeia poderiam absorver o vizinho e agiu, promovendo a anexação da Crimeia, um território étnico russo que havia sido cedido à Ucrânia nos tempos soviéticos, em 1954. E fomentou uma guerra civil de separatistas pró-Kremlin na região do Donbass, no leste da Ucrânia, que está no centro da confusão agora.

A ONU disse o quê? Ela não reconhece a Crimeia russa.

Alguém reconhece? Apenas oito aliados do Kremlin. Mas, na prática, a anexação é vista como um fato consumado na comunidade diplomática.

E as áreas autônomas? Aqui a coisa complica. Primeiro, porque não são tão homogêneas etnicamente; segundo, porque Putin não jogou todo seu peso militar para apoiar de forma decisiva os rebeldes.

Mas isso não o interessava? Anexar o Donbass seria muito mais complexo e caro, além de ter evidente custo militar e humano. A prioridade de Putin é outra: evitar que a Ucrânia, ou qualquer outro país ex-soviético, entre na Otan e, de forma talvez mais secundária, na União Europeia.

Por quê? Historicamente, os russos têm o seu flanco mais vulnerável no Leste Europeu. Por isso, tanto o Império Russo quanto a União Soviética ou dominavam ou tinham aliados na região. O ocaso soviético fez com que parte desses países fosse absorvida na esfera ocidental, e em 2004 a expansão da Otan chegou a três repúblicas que eram da união: Estônia, Letônia e Lituânia. Isso foi a gota d’água para Putin.

Mas isso não seria uma questão dos países? Sim, é o que diz o direito internacional e a lógica ocidental, quando lhe interessa. Politicamente, contudo, os EUA se comportaram como vencedores pouco magnânimos da Guerra Fria, perdendo a oportunidade de atrair a Rússia para uma parceria mais estável com seus aliados europeus.

E então Putin agiu. Ele primeiro travou uma guerra em 2008 na Geórgia, um país pequeno numa região explosiva, o Cáucaso, uma das rotas históricas de invasões e guerras —no caso, contra a Turquia. Nos dias de hoje, o problema lá é a infiltração de radicais islâmicos, como as duas guerras que Moscou lutou na Tchetchênia, que faz parte de seu território, demonstraram. No caso georgiano, o então presidente do país tinha uma atitude agressiva e foi visto como imprudente ao provocar os russos, dando a desculpa para que eles atacassem em nome da minoria étnica que povoa duas áreas do país. Resultado, hoje a Geórgia não controla 20% de seu território, o que na prática impede que ela se una à Otan.

Que é exatamente o que Putin queria. Sim, e é o motivo pelo qual ele é visto como um vilão no Ocidente, pelo uso de força bruta quando acha necessário. O passo seguinte foram as ações na Ucrânia, em 2014.

E as sanções ocidentais tiveram efeito? Há uma pressão sobre a Rússia, mas especialistas se dividem sobre o real impacto, porque a resultante das sanções foi um incremento no mercado interno, o maior descolamento do sistema financeiro internacional e uma certa diversificação da economia, que ainda é dependente da exportação de hidrocarbonetos (petróleo e gás).

E a Europa segue comprando gás russo. O gasoduto Nord Stream 2, completado no ano passado, permitirá à Rússia, quando a Alemanha liberar sua operação, retirar boa parte do trânsito do gás natural que vende aos europeus por meio de velhas linhas que passam pela Ucrânia. Assim, Kiev pode perder boa parte dos US$ 2 bilhões anuais que aufere em taxas. O Nord Stream 2 e seu irmão em operação, o ramal 1, ligam a Rússia à Alemanha pelo mar Báltico. Hoje, 40% do gás que a Europa consome vem do país de Putin, e os EUA lutam para inviabilizar o gasoduto porque consideram que os europeus fazem jogo duplo.

Por que a Ucrânia não entrou na Otan e na UE? Pelo mesmo motivo da Geórgia: as regras dos clubes não permitem países com conflitos territoriais ativos. Isso torna conveniente o discurso ocidental, já que ninguém quer pagar para ver em um confronto direto com a Rússia. Assim, Kiev recebe apoio e algum armamento da Otan, mas não se esperam tropas em solo para sua defesa.

E o que acontece agora?Putin quer ver implementados os Acordos de Minsk 2, de 2015, que congelaram a guerra civil no Donbass. Só que eles preveem um grau de autonomia às áreas russas que Kiev não aceita. Ao deslocar tropas, insinua que pode usar a força como em 2014, o que alguns acham ser blefe.

Por quê? Porque o Exército ucraniano não pode derrotar o russo, mas causar um bom estrago. E uma invasão implicaria anexação de áreas, o que custa bilhões de que Putin não dispõe. Fora o risco de a Otan mudar de ideia e defender Kiev, o que arriscaria uma escalada perigosa, talvez nuclear. Não por acaso, as cinco potências atômicas se comprometeram recentemente a nunca iniciar uma guerra com essas armas.

Ao reconhecer as repúblicas rebeldes, de toda forma, Putin na prática mata os Acordos de Minsk, fazendo da Rússia um ator ativo no conflito, não mais um presumido juiz. Só não ficou claro, contudo, se Putin reconhecerá as atuais fronteiras das áreas separatistas ou se aceita a demanda deles, incluindo porções das antigas províncias de Lugansk e Donetsk como eram em 2014. Se o fizer, o caminho de uma guerra no leste da Ucrânia pode estar garantido.

O que está sendo negociado? Russos e ocidentais não avançaram nas negociações iniciadas em meados de janeiro para debater os termos apresentados por Putin para pacificar a região. Ele "trucou", pedindo compromisso do fim da expansão da Otan e retirada de forças da aliança de membros que entraram após 1997, ou seja, todo o bloco que era comunista. Isso não será aceito, mas pode haver concessões pontuais e o reinício de negociações sobre a Ucrânia, o que já será vendido em Moscou como uma vitória do líder.

E qual a resposta? Até aqui, é não, mas o fato de que diversas frentes de negociações foram abertas traz a esperança de que algum avanço venha a acontecer.

Se não der certo, pode haver guerra? Sim, o risco é real, embora não seja necessariamente o cenário mais provável. Putin tem na mesa opções mais drásticas e perigosas, como tentar invadir totalmente a Ucrânia e depois deixar o país sob condições de que nunca entre na Otan, ou ações mais pontuais.

E a Otan, faria o quê? Joe Biden cometeu um erro e admitiu que uma ação limitada não deveria trazer as sanções econômicas devastadoras que promete aplicar ao Kremlin em caso de invasão. Tentou corrigir, mas o estrago foi feito. Além disso, países como a Alemanha, o mais forte economicamente da Europa, são reticentes em um embate direto com Putin, explicitando o racha na aliança.

Mas a Otan não reforçou suas fronteiras com caças e navios? Sim, foi uma sinalização política, embora do ponto de vista militar não deverá fazer grande diferença, até porque não pretende defender diretamente a Ucrânia. Ainda assim, os EUA colocarem soldados em alerta é sempre um sinal forte.

E a crise recente no Cazaquistão, como se encaixa nisso? Há duas teorias sobre o fato de protestos legítimos contra o aumento de combustível terem quase virado uma revolução, com gente armada nas ruas. Primeiro, que foi fomentada pelo Ocidente para enfraquecer Putin. Segundo, que foi obra do Kremlin para, resolvida rapidamente, o colocar em posição de força. Seja o que for, Putin saiu fortalecido.

Há outras implicações? A crise aproximou ainda mais a Rússia da China, que deu apoio a Putin e disse que ambos os países precisam se defender juntos do Ocidente. É uma tendência que já estava colocada, mas que pode ter efeitos no futuro próximo.

Há alguma chance de uma Terceira Guerra Mundial com a China e a Rússia de um lado, e o Ocidente, do outro? Isso é especulação pura, até porque tal conflito não interessaria a ninguém e teria uma grande chance de acabar com a civilização. Ainda assim, não passou despercebido que a China reiniciou seu embate com os EUA no Indo-Pacífico, reagindo a exercícios de dois porta-aviões americanos na sua vizinhança com mais uma grande incursão aérea contra Taiwan.

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