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Republicanos antiaborto ameaçam programa dos EUA contra HIV em 50 países

Impasse é exemplo de como partido usa maioria na Câmara para impor posições conservadoras

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Sheryl Gay Stolberg
Washington | The New York Times

A democrata Nancy Pelosi, ex-presidente da Câmara dos Estados Unidos, e o republicano George W. Bush, ex-presidente, não concordam em muitas coisas. Mas no início deste ano eles participaram juntos de um encontro em Washington –com o astro do rock Bono em vídeo, de Dublin– para marcar o 20º aniversário do maior e, sem dúvida, mais bem-sucedido programa de ajuda externa do país.

Bush criou o Programa de Emergência do Presidente para Alívio da Aids em 2003. Nas duas décadas seguintes, o Pepfar, como o projeto é conhecido na sigla em inglês, salvou 25 milhões de vidas e serviu como uma poderosa ferramenta de soft power, símbolo da liderança moral dos EUA no mundo.

Ele teve um apoio extraordinário de uma coalizão bipartidária de progressistas e conservadores cristãos.

Enfermeira conversa com paciente durante inscrição para programa gratuito de tratamento de HIV na Zâmbia - Lori Waselchuk - 7.jul.04/The New York Times

Mas agora o Pepfar corre risco de ser uma vítima da política do aborto no momento em que o Departamento de Estado se reorganiza para tornar o programa permanente.

O programa termina em setembro. Mas os parlamentares republicanos não estão avançando com um projeto de lei para revalidá-lo porque os oponentes do aborto –liderados por um congressista republicano que já foi um apoiador do Pepfar– insistem em adicionar restrições relacionadas ao procedimento.

O impasse é o exemplo mais recente de como os republicanos estão usando a maioria na Câmara para impor opiniões conservadoras sobre as políticas sociais no governo federal. Eles se concentraram em particular no aborto, um ano após a Suprema Corte anular a decisão do caso Roe vs. Wade e, com ela, o direito ao procedimento. Há poucos dias, os republicanos condicionaram a aprovação do orçamento anual militar a cláusulas que limitam o acesso ao aborto e o atendimento a pessoas transgênero.

A luta pelo Pepfar, um programa de US$ 7 bilhões (R$ 33 bilhões) anuais que funciona em mais de 50 países, é semelhante porque é um programa amplamente bipartidário que agora parece correr o risco de ser sugado para uma luta partidária por questões culturais e sociais.

O Pepfar continua tendo amplo apoio, inclusive do deputado republicano Michael McCaul, do Texas, presidente do Comitê de Relações Exteriores, que supervisiona o programa e apoia a lei de revalidação.

Mas até agora McCaul não fez avanços devido a objeções dos oponentes ao aborto, incluindo seu colega republicano Chris Smith, de Nova Jersey, uma das principais vozes antiaborto no Congresso americano e que também ajudou a redigir a legislação que criou o Pepfar.

Smith agora diz que não concordará em renovar o programa a menos que esteja sujeito à chamada política da Cidade do México –promulgada por presidentes republicanos, mas suspensa por democratas, incluindo Joe Biden–, que impediria o programa de fazer parceria com qualquer organização que forneça serviços de aborto, independentemente da fonte de financiamento.

Isso é um empecilho para os democratas, que exigem uma revalidação da política por cinco anos sem restrições adicionais. "Fizemos revalidações limpas durante 20 anos", disse a deputada democrata Barbara Lee, da Califórnia, principal promotora do Pepfar.

Mas há um obstáculo substancial: três grupos influentes que se opõem ao aborto –o Family Research Council (Conselho de Pesquisa Familiar), braço de ação política da Fundação Heritage, e Susan B. Anthony Pro-Life America– ficaram do lado de Smith e pretendem "ganhar" a votação quando compilarem suas avaliações anuais dos congressistas. Um voto pela renovação do Pepfar sem provisões contra o aborto seria considerado um demérito, tornando-o politicamente tóxico para a maioria dos republicanos.

A situação tem alarmado os defensores do programa. Num email, Bono chamou o impasse de loucura e pediu ao Congresso que "proteja o compromisso bipartidário de manter a política fora do Pepfar".

McCaul disse estar "conversando com apoiadores dentro e fora do governo e trabalhando com colegas de ambos os lados do corredor na Câmara e no Senado" para resolver a disputa. Ele também tem trocado mensagens com Bono, que, por sua vez, está em contato com os líderes do Congresso sobre o assunto.

Um alto funcionário da Casa Branca, sob condição de anonimato, disse na quinta-feira (27) que a Casa Branca está "se envolvendo estreitamente com o Congresso em altos níveis" em busca de uma revalidação consecutiva de cinco anos. Mas nos últimos meses Smith e grupos de direita começaram a acusar o governo Biden de injetar políticas progressistas no programa.

No final de maio, um estudioso da Fundação Heritage publicou um ensaio no site The Hill argumentando que o Pepfar se tornou "cada vez mais politizado" e precisa de uma revisão. Smith seguiu no início de junho com uma carta afirmando que Biden "sequestrou o Pepfar".

Em entrevista, ele citou um plano para que o programa se associe a organizações que defendem "reformas institucionais em leis e políticas relacionadas aos direitos sexuais, reprodutivos e econômicos das mulheres". Ele afirmou que isso era um plano para "integrar o aborto ao trabalho de HIV/Aids".

O documento também diz que os programas do Pepfar devem "promover os direitos humanos e a descriminalização para as comunidades de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queers e intersexuais (LGBTQI+)". Isso não agradou ao Conselho de Pesquisa Familiar, cujo principal lobista, Travis Weber, recentemente chamou o Pepfar de "um enorme fundo secreto para o aborto e a defesa LGBT".

George W. Bush, então presidente dos EUA, acompanha apresentação de crianças da Uganda órfãs por causa da Aids - Doug Mills - 10.jun.23/The New York Times

O alto funcionário da Casa Branca disse que o "foco intencional para a equidade na saúde é novo" e que veio em resposta aos pedidos das comunidades locais para que o Pepfar "resolva as barreiras à saúde de crianças, adolescentes e mulheres jovens". A menção aos direitos das mulheres se refere a garantir que as adolescentes tenham acesso à escola, disse o funcionário.

A administração Biden adicionou uma nota de rodapé ao documento esclarecendo que o Pepfar não financia abortos, afirmação que Smith chamou de "sem sentido".

Não há evidências de que o Pepfar ou seus parceiros estrangeiros tenham usado dinheiro de impostos federais dos EUA para promover ou realizar abortos; a lei americana não o permite. Mas alguns beneficiários do Pepfar, como a PSI (Population Services International), organização global de saúde com sede em Washington, fornecem serviços relacionados ao procedimento com dinheiro de outras fontes.

"A afirmação feita pelos críticos é que organizações como a PSI estão trabalhando com dinheiro dos EUA e envolvidas em aborto. Isso não deveria ser ilegal?", disse Karl Hofmann, presidente e CEO do grupo. "Acho que minha resposta é que esses dois fatos são verdadeiros e não são ilegais."

Enquanto o debate se desenrola no Capitólio, o funcionário do Departamento de Estado que supervisiona o Pepfar, John N. Nkengasong, está prestes a receber uma grande promoção. Na terça-feira (1o), o secretário de Estado, Antony Blinken, deverá anunciar a criação de um novo Bureau de Segurança e Diplomacia em Saúde Global, a ser liderado por Nkengasong. A ideia é integrar o Pepfar ao trabalho de saúde global mais amplo do departamento e retirá-lo do status de emergencial.

Desde sua criação, o programa já investiu mais de US$ 100 bilhões (R$ 472,4 bilhões) no combate à crise global da Aids. Análises independentes da KFF (anteriormente Kaiser Family Foundation) mostraram que o Pepfar ajudou a melhorar a saúde materna e infantil e está "associado a grandes e significativas quedas da mortalidade" nos países onde atua.

Os apoiadores do programa esperam que Bush influa. No início deste ano, a autora e ativista Emily Bass enviou ao ex-presidente uma cópia autografada de seu livro "To End a Plague: America's Fight to Defeat Aids in Africa" (para acabar com uma praga: a luta da América para derrotar a Aids na África), que narra a história do Pepfar no combate à Aids na África.

Algumas semanas atrás, disse Bass, Bush lhe enviou uma carta de agradecimento.

"Laura e eu continuaremos investindo nesta missão pelo resto das nossas vidas", escreveu ele.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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