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Lúcia Guimarães

Ecos de 1968 pairam sobre convenção democrata de 2024, mas contexto é outro

Gaza não mobiliza como Vietnã, e tiro contra Trump não se compara às mortes de Luther King e Robert Kennedy

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Quando Joe Biden escolheu Chicago, em Illinois, para sediar a convenção do Partido Democrata, em abril de 2023 —Houston, Atlanta e Nova York também concorriam— ele deixava claro a prioridade da geografia eleitoral. Chicago, a maior metrópole do Meio Oeste, poderia ajudar a construir a sonhada "parede azul" de votos democratas na região.

O presidente certamente contava em ser o consagrado na convenção que começa nesta segunda-feira (19); não esperava o ousado ataque do Hamas a Israel ou a brutalidade da reação de Binyamin Netanyahu; e não lhe ocorria que "Chicago" e "1968" voltariam a rondar o imaginário dos americanos com idade ou conhecimento histórico para saber da combustão da união desses dois termos.

Estádio do Chicago Bulls, United Center vai sediar convenção democrata que começa nesta segunda-feira (19) - REUTERS

Os protestos contra o envolvimento americano no Vietnã durante a convenção em agosto de 1968 transformaram Chicago numa praça de guerra, não sem a cooperação da brutal polícia local. Historiadores acreditam que as cenas de violência contribuíram para derrota do candidato democrata Hubert Humphrey seis semanas depois, facilitando a apertada eleição do republicano Richard Nixon.

É importante não se seduzir por narrativas reducionistas. 2024 não é, de longe, 1968. Naquele ano, o mais letal da guerra do Vietnã, havia meio milhão de americanos no Sudeste Asiático, alistados pelo serviço militar obrigatório. O conflito no Vietnã havia esgarçado a sociedade americana e agravado a hostilidade intergeracional entre os jovens, que não queriam lutar e morrer, e a elite mais velha, que tomava decisões desastrosas.

Neste ano, americanos não estão arriscando a própria vida em guerras que dominam sua política externa, como Ucrânia ou Gaza. Mas a repulsa pela reação israelense, que já matou mais de 40 mil palestinos, a maioria mulheres e crianças, impulsionou a primeira onda de protestos estudantis contra uma crise externa desde a invasão do Iraque. O verão do Hemisfério Norte esvaziou as universidades em junho, mas a tensão ainda é evidente —na quarta-feira (14), Minouche Safik, reitora da Universidade Columbia, um polo do movimento anti-Israel, renunciou subitamente às vésperas do reinício do ano letivo.

Uma coalizão intitulada March on the DNC (marcha na convenção nacional democrática) espera atrair entre 20 e 30 mil manifestantes pró-palestinos nesta segunda-feira em Chicago, mas mantém um impasse com a prefeitura sobre a rota porque quer se aproximar do local da convenção, o Centro United, a arena sede do time de basquete Chicago Bulls.

Os organizadores da marcha dizem que o governo municipal está negando a instalação de banheiros portáteis, sistema de som e um palco. O governador democrata de Illinois, J.B Pritzker, tenta se equilibrar entre a defesa do protesto legítimo e a prevenção de violência que distraia a atenção nacional da confirmação da novíssima chapa Kamala Harris-Tim Walz.

Há outra distinção importante sobre o estado emocional do público americano nos meses que precederam as convenções eleitorais. No final de janeiro daquele ano, os norte-vietnamitas lançaram a Ofensiva do Tet, uma série de ataques surpresa que mataram mais de 2.000 sul-vietnamitas, centenas de americanos e sinalizou a impossibilidade de uma vitória contra os comunistas a médio prazo.

Em abril do mesmo ano, o reverendo Martin Luther King Jr., líder pacifista do movimento de direitos civis, foi morto por uma bala de fuzil em Memphis, no Tennessee, num assassinato que traumatizou o país. E o jovem senador democrata que se arriscou para anunciar a morte de King e acalmar ativistas negros, Robert Kennedy Jr., foi assassinado num hotel dois meses depois, após vencer a importante primária da Califórnia, no que parecia uma campanha destinada a chegar à Casa Branca.

A bala que raspou a orelha de Donald Trump num comício, em julho passado, foi disparada por um solitário mais identificado com elementos culturais do trumpismo –interesse em armas e conspirações. Não há, neste ano, nada que se assemelhe ao trauma dos assassinatos de 1968.

Mas há uma consequência relevante daquela convenção. O desafeto entre a esquerda e os caciques políticos regionais que impuseram Hubert Humphrey como candidato desaguou num compromisso para democratizar o processo de escolha por meio de delegados que redefiniu o Partido Democrata. Nascia a agremiação que produziria Bill Clinton e Barack Obama, dominada pela classe profissional, gente que corteja bilionários do Vale do Silício e presta atenção no que diz George Clooney —há anos, um residente da Europa.

Os descontentes que vão emergir nas ruas nesta segunda não querem tomar o poder ou flertar com uma teocracia, como os aliados de Trump. Seu inimigo não é o republicano, é o establishment que não questionou a candidatura de Biden à reeleição e tolerou a carnificina em Gaza.

Resta saber se Donald Trump vai assombrar os eleitores mais do que Richard Nixon.

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