Andanças na metrópole

As camadas de história encobertas em construções, ruínas e paisagens

Andanças na metrópole - Vicente Vilardaga
Vicente Vilardaga

Caminhada que prenunciou a ditadura faz 60 anos

Marcha da Família com Deus pela Liberdade em São Paulo favoreceu o Golpe Militar

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São Paulo

Em tempos de manifestações bolsonaristas que reúnem multidões na avenida Paulista, não dá para deixar de pensar na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A primeira grande caminhada da direita brasileira que antecedeu o Golpe Militar aconteceu em São Paulo há exatos 60 anos, em 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro da família.

Nos dias seguintes foram realizadas passeatas em várias cidades do interior paulista e em outros estados. A motivação de todas elas era a ameaça comunista, representada pelo governo João Goulart, que havia feito um discurso contundente em favor de reformas estruturais uma semana antes e cairia 12 dias depois.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade em frente à catedral da Sé no dia 19 de março de 1964, - Folhapress

Na triste data de 1964, milhares de manifestantes se concentraram na praça da República às 14 horas e duas horas depois começaram uma caminhada que passou pela rua Barão de Itapetininga, pela praça Ramos de Azevedo, pela praça do Patriarca, cruzou o viaduto do Chá e seguiu pela rua Direita até alcançar a praça da Sé, onde a banda da Força Pública (atual Polícia Militar) tocava o Hino Nacional e foi rezada uma missa pela salvação da democracia. O percurso entre o ponto de saída e o de chegada foi de 1,3 km.

Em seguida vieram os comícios. Entre os oradores estavam os deputados federais Herbert Levy (UDN-SP), Plínio Salgado (PRP-SP) e o senador Auro de Moura Andrade (PSD-SP). Políticos que depois do golpe passariam à oposição como Ulysses Guimarães (PSD-SP) e Carlos Lacerda (UDN-RJ) também estavam lá.

Jornais da época diziam que a marcha teria reunido até 500 mil pessoas. Seria cerca de 10% da população da cidade, então com 5 milhões de habitantes. Nunca tanta gente havia se reunido no Centro.

O evento foi organizado por vários grupos da sociedade civil como a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), a União Cívica Feminina (UCF), a Fraterna Amizade Urbana e Rural e a Sociedade Rural Brasileira, entre outras dezenas de entidades conservadoras.

Manifestação em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro no dia 25 de fevereiro na avenida Paulista - Folhapress

Foi apoiada também pela Fiesp e pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), organização formada por empresários e militares e liderada pelo general Golbery do Couto e Silva que divulgava publicações e panfletos contra a "ameaça vermelha". Quem idealizou a manifestação da direita foi o deputado federal Antônio Silvio Cunha Bueno (PSD-SP), que pensava em chamá-la de Marcha de Desagravo ao Santo Rosário.

Foi uma manifestação de gente branca religiosa de classe média e rica e não se viu o povo pobre andando pela metrópole naquele dia. O embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, disse que a "nota destoante" da marcha foi a ausência de participantes das classes populares.

Os manifestantes percorreram o centro novo e o velho da cidade sem incidentes. O único imprevisto aconteceu em um prédio comercial na rua Barão de Itapetininga de onde se jogou água sobre os participantes da passeata. Os responsáveis foram identificados e encaminhados para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops).

A primeira-dama Leonor de Barros (ao centro), os deputados Herbert Levy (último à direita) e Cunha Bueno (penúltimo à dir.) e o professor Valdemar Ferreira (à esquerda) durante a marcha - Folhapress

Houve uma grande mobilização de mulheres, puxada pela primeira-dama Leonor Mendes de Barros, mulher do governador Ademar de Barros, que não foi à praça da Sé. O Ipes ofereceu cursos para formar lideranças femininas e promover a união das famílias contra os comunistas.

As pautas do passado e do presente são semelhantes. O pensamento da nova direita tem várias correspondências com o dos participantes da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Uma delas é a defesa da família tradicional, algo sempre em pauta na ideologia bolsonarista. Fala-se também em ameaça comunista, representada pelo PT, e se revela uma ojeriza à cor vermelha.

Outra característica comum é o proselitismo religioso e o empenho em misturar Igreja e Estado. Na atualidade, essa mistura é protagonizada pelas igrejas pentecostais. A principal afinidade, porém, é o desapreço pela democracia e a esperança no golpismo. E também o predomínio da classe média e de brasileiros mais abastados nas manifestações.

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