Andanças na metrópole

As camadas de história encobertas em construções, ruínas e paisagens

Andanças na metrópole - Vicente Vilardaga
Vicente Vilardaga

Movimento exige 'arqueologia negra' na estação 14 Bis do metrô

Escavação expôs mais de 17 mil itens, muitos ligados a rituais de candomblé

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São Paulo

A estação 14 Bis da linha 6-Laranja do metrô, construída no terreno onde era a quadra da escola Vai-Vai, no Bixiga, está no centro de uma polêmica. O trabalho de escavação feito ali pela empresa A Lasca, contratada pela concessionária do projeto, a Linha Uni, tem revelado a existência de farto material arqueológico no subsolo.

Para o Movimento Mobiliza Saracura Vai-Vai, que representa a comunidade local, se tratam de vestígios de um passado quilombola com materiais associados à prática do candomblé. Representantes do movimento dizem que para os técnicos da A Lasca é lixo doméstico de importância duvidosa.

A grande questão que o movimento discute com a A Lasca é olhar o sítio arqueológico a partir da perspectiva da arqueologia negra, decolonial, que atesta a existência de um quilombo urbano na região.

"Quando você olha para uma coisa e a chama de lixo doméstico você parte do pressuposto de que aquilo não tem valor, mas se você pensa em materiais religiosos o significado é outro", diz o advogado Rafael Funari, que comanda o grupo de trabalho jurídico do Movimento Saracura Vai-Vai.

Obras da linha 6-Laranja do metrô na futura estação 14 Bis, que poderá se chamar Saracura Vai-Vai - Rubens Cavellari/Folhapress

"A arqueologia negra busca um olhar por outra lupa, não a do colonizador europeu que só se importa com louças francesas do século 18."

Os primeiros vestígios de um sítio arqueológico na área foram detectados em abril de 2022. Desde então foram encontradas 17 mil peças. Entre os objetos achados há solas de sapato, peças de cerâmica, cachimbos, garrafas de vidro, louças domésticas, toras de madeira e, segundo Funari, foi revelada uma figura que remete a exu.

É um ferro retorcido que segundo autoridades do candomblé pode ser a representação do orixá, o que seria muito importante para pensar nos rituais que aconteciam no local.

Foram achadas também algumas tigelas de cerâmica usadas nas práticas de assentamento dos orixás. Há uma frase emblemática sobre essas tigelas da mãe Jennifer, responsável pelo terreiro Ilê Asé Ya Osun, na rua Almirante Marques de Leão, no Bixiga.

Desfile da Vai-Vai no grupo especial: atualmente a escola não tem um lugar fixo para ensaios - Karime Xavier/Folhapress

Ela diz que se seu quarto de santo fosse destruído, soterrado, o material encontrado seria o mesmo que se vê na estação 14 Bis.

Para fortalecer a hipótese da existência do quilombo, o movimento Saracura Vai-Vai conta um antigo registro de uma ata da Câmara Municipal de 1824 em que a população pedia o fechamento das passagens do rio Anhangabaú e do Saracura porque eram rotas de fuga de escravos.

Os negros fugiam pelas margens do Anhangabaú e se instalavam em torno do Saracura. Era uma área de várzea, alagadiça, inóspita e com muita mata.

Outro argumento que o movimento usa é uma notícia no jornal Correio Paulistano de 1907 que chama aquela região do Bixiga de "pedaço da África". A matéria fala de crianças negras fazendo gaiolas, de velhos de lábios grossos com seus cachimbos e de um pai de santo chamado Antônio que davam ao lugar "uns ares do Congo".

Córrego do Saracura
Antiga imagem do vale do Saracura, no Bixiga: existiu um quilombo na região no século 19 - Vincenzo Pastore/Domínio Público

A A Alasca nega qualquer risco de confusão entre lixo doméstico e materiais de cultos do candomblé nas suas pesquisas e diz que lideranças religiosas estão sendo ouvidas para esclarecer as dúvidas. A empresa afirma também que adota uma perspectiva decolonial, multicultural e admite a existência do quilombo. Mãe Jennifer tem sido consultada pela A Lasca.

O Movimento Saracura Vai-Vai protesta pelo fato do Iphan, em 2020, ter dispensado a realização de estudos complementares do lugar com a justificativa de que seria uma área urbana consolidada.

Por conta da atitude do órgão federal não teriam sido realizados estudos históricos e antropológicos no local, como atestam documentos do MPF. Não se considerou inicialmente a possibilidade de que ali houvesse um quilombo. Essa hipótese só começou a ser cogitada depois da mobilização política, diz Funari. Segundo a A Lasca, porém, não houve dispensa do estudo.

Uma das demandas do movimento é a criação de um memorial na futura estação, que deveria se chamar Saracura Vai-Vai e não 14 Bis. Outra é a busca de uma quadra definitiva para a escola Vai-Vai, que perdeu a quadra e não tem um lugar fixo para seus ensaios.

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