Andanças na metrópole

As camadas de história encobertas em construções, ruínas e paisagens

Andanças na metrópole - Vicente Vilardaga
Vicente Vilardaga

Bem-vindo ao reino secreto da Rafulândia

Réplica de vila colonial se oculta no quintal de um sobrado na Aclimação

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São Paulo

O caixeiro-viajante Raful de Raful (1913-2003), descendente de libaneses e italianos e nascido em Batatais (SP), foi um homem com muitas facetas. Vendedor de baralhos, também era mágico profissional e colecionador:

Além disso, gostava de arquitetura colonial, o que o fez dedicar cinco anos de sua vida, na primeira metade da década de 60, a construir uma réplica de uma vila seiscentista no grande quintal de sua residência em São Paulo. No lugarejo imaginado por Raful há casas, capela, museu desativado, pequenas vendas, um sobrado para o paço municipal e a cadeia pública e um amplo imóvel com quatro dormitórios.

A vila, apelidada de Rafulândia, se oculta atrás de um sobrado com portões altos de ferro que passa despercebido na rua Rubi, na Aclimação. Quem olha de fora não pode supor que há uma dezena de construções no fundo do terreno.

Vila secreta
Capela de vila secreta na rua Rubi, na Aclimação: construções reproduzem cidadezinha colonial

Entrar ali é como sair de São Paulo. De repente, depois de uma pequena rampa, surge um lugarejo secreto que Raful fez para sua própria contemplação. Raramente levava amigos para ver sua cidade particular. Nunca pensou em alugar os imóveis. Usava os espaços para armazenar suas inúmeras coleções e para circular entre eles e olhá-los.

"Ele gostava desse tempo anterior ao dele, via o que existia na sua juventude e observava essa mudança de São Paulo, que passou a ser uma cidade grande de fato, deixou de ser uma província", afirma Victor Raful, administrador da casa e neto do patriarca. "Meu avô tinha nostalgia desse período antigo. Ele entendia que era melhor, tinha mais tranquilidade." Segundo Victor, foi por isso que ele "fez seu próprio ecossistema onde pudesse curtir o ambiente dele com as coisas dele".

Todo o empreendimento foi bancado com a venda de baralhos pelo Brasil e com serviços de mágico. As construções usam materiais de demolição de imóveis do século 19 vindos, inclusive, de outras cidades, como Santos, e até de outros estados. Raful realizou um grande esforço de engenharia para levar seu sonho adiante e teve cuidado em fazer uma cópia fidedigna.

Trole
Carruagem do século 19: coleção de Raful tinha quatro mil itens e incluía meios de transporte - Vicente Vilardaga

No seu museu particular, chegou a ter uma coleção com cerca de quatro mil itens, incluindo carros e outros meios de transporte. Teve 13 carros fabricados entre 1910 até 1930, e foi um dos primeiros colecionadores de modelos antigos no país. Essa fase passou e todos os veículos foram vendidos nos anos 80. Mas ainda se encontram objetos e imagens na vila que merecem atenção.

Logo na entrada há um espaço com um trole, uma pequena carruagem, original do final do século 19. Um pouco adiante se abre uma sala cheia de ferramentas e aparelhos mecânicos de todos os tipos, com destaque para máquinas de escrever. Há dezenas delas, assim como máquinas de costura. "Era uma tecnologia de época que fazia muito sentido para ele", diz Victor.

Está em exposição um equipamento para afiar giletes e uma moto de 1912 que se assemelha a uma bicicleta motorizada. O acervo da casa inclui um quadro com uma grande foto de Mãe Menininha do Gantois sentada em sua cadeira. Não existem outras imagens religiosas por ali, com exceção da capela da vila. Escritor e poeta, Raful se declarava agnóstico, alguém que não tem religião.

Vista érea da vila secreta
Vista aérea da vila secreta: objetivo dos proprietários é transformar o lugar em ponto turístico

Depois de sua morte, o imóvel ficou esquecido, apesar da riqueza acumulada. A família nunca fez propaganda da existência da vila secreta e o lugar foi tomado pela poeira. Também ficou nas sombras o acervo do museu, até que, entre 2021 e 2022, Victor decidisse colocar os produtos à venda.

Não foi um leilão, mas uma espécie de comércio de garagem que durou seis meses. Ao final da temporada, 95% dos itens das coleções de Raful foram vendidos. Restam atualmente menos de 400 peças.

O próximo passo é dinamizar o uso da vila, que é patrimônio da cidade. Victor quer transformá-la num local de convívio de pessoas, onde se criem atividades e se possa passar o tempo. Ele busca parceiros que o ajudem a revitalizar o lugar e transformá-lo numa referência turística. "A vila secreta está começando a despertar de uma profundo sono histórico", diz. "E sou seu guardião."

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