Jairo Marques

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A konbini de cada um de nós

Será que a vida precisa seguir sempre o padrão de funcionamento das pequenas lojas japonesas, que ficam 24 horas abertas?

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Uma das melhores coisas que fiz neste ano encardido e virulento, além de me vacinar e defender a vacina, foi entrar para um clube de leitura. Sou um adicto de pluralidades e participar de uma roda onde cada "serumano" traz uma impressão diferente ou complementar de uma obra é um deleite.

O último livro analisado pelo grupo que participo, bastante misturado em formas de expressão e de levar a vida, foi "Querida Konbini", de Sayaka Murata, que me mobilizou a escrever esta derradeira coluna de 2021.

Konbinis são pequenas, funcionais e iluminadas lojas de quinquilharias do Japão. Ali se podem encontrar comidas rápidas, soluções de urgência para casa e tralhas inúteis que adoramos. Lá na minha terra, chamariam de armazém da dona Severina, requintado com a dinâmica e o jeito oriental de fazer certas coisas.

A porta de entrada de uma konbini, no Japão, com vários produtos coloridos e placas de anúncios. Pessoas carregam sacolas saindo da loja, que tem letreiros em rosa, verde e vermelho
Exemplo de uma konbinis, pequenas lojas de cacarecos do Japão - Divulgação

A narrativa se passa em torno de Keiko, uma mulher que dedica toda sua vida adulta a trabalhar em uma Konbini com tamanha devoção que se sente, em alguns momentos, como um dos produtos dispostos na prateleira, como uma peça da engrenagem dos freezers, como uma frase de efeito dedicada aos clientes.

O conforto da protagonista em fazer sempre a mesma coisa reside em dois pilares: agindo mecanicamente, fazendo o que é preciso fazer, pensando como manada, imagina ela não abrir brechas para ter sua conduta questionada. É só seguir o manual do viver esperado pelos outros ou o manual de boas práticas da loja.

Geladeiras com produtos alimentícios diversos como sanduíches, refrigerantes, chás, comida pronta
Nas konbinis, comidas prontas e produtos do dia a dia - Divulgação

A outra vertente que sustenta a permanência de Keiko na Konbini, algo bastante inusitado, pois o trabalho costuma ser temporário, é a segurança por trás de fazer tudo sempre igual. A ilusão de quentinho no coração de pertencer a algo que nos padroniza, supostamente nos faz ser iguais e não dar o que falar.

Nossos modelos de comportamento e de pensamentos, nossas maneiras de cumprir com nossas obrigações no trabalho —sem prazer—, na família —sem laços—, nos relacionamentos —sem comprometimento—​, nos colocam a todos dentro de konbinis.

"O padrão do mundo é compulsório e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retificados", diz trecho do livro.

Prateleiras lotadas de produtos como balas, sucos, condimentos
Prateleiras de uma konbinis, pequenas lojas de cacarecos, no Japão - Divulgação

Somos vigilantes incansáveis de quem não acende seus letreiros luminosos e, incrivelmente, também somos críticos àqueles se limitam a apertar o interruptor. Uma contradição também padronizada. Adoramos a tal zona de conforto, mas somos infernizados por ficar nela. Amor para compreender o outro? Bobagem.

A genialidade da narrativa também tem espaço na exploração da hipocrisia. Está contemplada nas entrelinhas no livro a mentalidade do inconformismo com nosso jeito konbini de viver, mas devidamente adornada como algo limitado ao pensamento, pois as práticas são sempre controversas, conduzidas pelo preconceito, pelo lugar-comum, pelo julgamento.

Como um inquieto em busca de mais palcos de manifestações dos valores do diverso, percebo quanto são reais na atualidade os conflitos entre querer buscar maneiras de exercer a pluralidade, de romper com mentalidades preestabelecidas e, ao mesmo tempo, manter, no fundo, tudo igual.

Ainda temos na boca um sabor de dúvida do porvir e suas surpresas, ainda nos recuperamos de um tempo que nos colocou diante de sofrimentos por não podermos voltar integralmente a nossas konbinis. O bom é que as portas dessas lojinhas estão abertas 24 horas. Entrar, ficar ou sair é decisão sempre possível. Boas festas!

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