Jairo Marques

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Pessoas com deficiência sempre viveram 'No Limite'; qual a novidade?

Atleta Fernando Fernandes, que é cadeirante, vai ser apresentador de programa global, que promove marco e tem potencial de causar alguma reflexão

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Muita gente comemorou, se emocionou e achou revolucionário o anúncio do atleta e bonitão Fernando Fernandes, que é cadeirante, como novo apresentador do programa "No Limite", da TV Globo, em que pessoas são levadas à exaustão durante provas de sobrevivência em lugares inóspitos.

De fato, ver uma pessoa com deficiência à frente de uma atração de entretenimento na maior vitrine televisiva do país é um marco —atrasado e com certo oportunismo— e tem potencial de promover alguma reflexão coletiva a respeito de diversidade, inclusão, potenciais humanos.

Um homem em uma cadeira de rodas, vestindo camisa branca e calça listrada, abre os braços em meio a um terreno aberto, coberto de mato, ao fundo, um arco-íris
Fernando Fernandes, que vai apresentar programa de entretenimento na TV Globo - Instagram/fernandoflife

Fernando não anda, mas realizas coisas a bordo de sua cadeira de rodas que subvertem a lógica do "isso não dá para você fazer nessas condições". Até por isso, conseguindo holofotes por meio de aventuras inimagináveis como surfar na pororoca amazônica ou chegar perto de um vulcão em erupção no Havaí, sem poder contar com pernocas ativas para se sustentar ou correr, ele, agora, foi ungido a vitrine global.

A realidade, porém, é quem é contemplado com uma diferença física, sensorial ou intelectual vive no limite —ou precisa se expor a incontáveis limiares— o tempo todo e tem em seu traçado de existência desafios para manter-se íntegro que fazem parecer que comer larvas no meio do mato seja como degustar o manjar dos deuses.

Como exemplos pessoais, já fui carregado para vencer escadas em órgãos públicos, já fiquei muitas horas sem ir ao banheiro da escola porque não havia acessibilidade por lá —até hoje, em muitas, não há—, já ignorei estar sendo vítima de preconceito para não perder uma oportunidade ou para evitar criar climão, já deixei de ir onde queria porque "não dava", já chorei onde era para rir.

Antes de o leitor chegar ao limite de sua paciência em ler chororôs, destaco ainda que a exclusão social é por si só suportar o máximo do descaso da humanidade e ela se dá em todas as áreas que se imaginar, do lazer ao trabalho, do amor ao sexo, da praia à montanha.

A gente que é "malacabado", na real, está muito cansado e desgastado de ter de "se superar" para ir ao mercado comprar batata vencendo desafios arquitetônicos toscos. A gente está cansado de "ser exemplo de resiliência" em ambientes que massacram e ignoram o fato que guardar uma diferença não determina potenciais e potências.

A gente está farto de explicar que somos iguaizinhos "serumanos", mas, às vezes, com alguns aparentes parafusos bambos que o trepidar dos pensamentos, atitudes e olhares equivocados nos vulnerabilizam mais.

Não tenho dúvidas de que vai ser interessante assistir o contraste de um cara cadeirante falando para pessoas andantes pararem "de ser mole" e atravessarem logo um lago cheio de jacarés. Talvez cenas assim ajudem os espectadores a imaginarem os crocodilos que cegos, surdos, paralisados cerebrais, pessoas com síndrome de Down precisam amansar sem nem ter ido à selva.

Seria incrível se o programa fosse além do impacto óbvio da imagem de um homem vestido com rodas em seu comando e apresentasse ao público ferramentas de acessibilidade comunicacional, como janela de Libras, legendas, audiodescrição, e falasse de inclusão, de alguma maneira.

Quem sabe não mostrem que viver no limite, ter coragem, quando é opcional e vale uma grana, pode ser até divertido e entreter, mas quando é imposto e forçado, tem lá seus dissabores e suas incontáveis dores.

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