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O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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De quantas formas se faz um estudo científico?

As diferentes maneiras de se descobrir se café faz bem ou não

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Kleber Neves

Em 1747, James Lind, médico da Marinha Real Britânica, estava lotado a bordo do HMS Salisbury. Na época, as viagens de longa duração contavam com um passageiro indesejado: o escorbuto. Hoje sabe-se que ele é provocado por deficiência de vitamina C, mas até então não se conhecia a sua causa. Muita gente morria, a despeito dos tratamentos mais variados – desde vegetais frescos até um elixir de ácido sulfúrico, álcool, açúcar e especiarias.

Numa determinada travessia, tendo de lidar com uma escalada da doença, Lind escolheu 12 tripulantes com sintomas parecidos e os acomodou no mesmo quarto, ministrando-lhes a mesma dieta, exceto por um detalhe. Os pacientes foram divididos em pares e cada par recebeu uma prescrição diferente: cidra, gotas do tal elixir, duas colheres de vinagre, meia caneca de água do mar, laxante, e o último par, duas laranjas e um limão por dia. Depois de duas semanas, só essa última dupla havia melhorado. Esse foi um dos primeiros experimentos controlados de que se tem registro.

Arte ilustra uma mulher segurando duas pilhas de xícaras de café sobre os olhos, como se fossem óculos
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Agora, o que faz de uma investigação um experimento? É a manipulação do objeto de estudo. Se em vez de determinar uma dieta para cada dupla, Lind tivesse permitido aos pacientes que comessem o que bem entendessem, o médico teria feito um estudo observacional.

Num estudo observacional, os cientistas, como diz o nome, apenas observam, sem interferir. Por exemplo, se você quer saber se café é bom para dor de cabeça, pode comparar um grupo de pessoas que tomam café todo dia a outro de gente que nunca toma café, e então verificar qual grupo relata dores de cabeça com mais frequência – esse seria um estudo transversal. Outra alternativa seria acompanhar um mesmo grupo de pessoas por vários anos, monitorando quanto café essas pessoas tomam e a frequência de dores de cabeça ao longo do tempo – um estudo de coorte.

Dá para imaginar isso como uma discussão interminável sobre estudos científicos com uma pessoa cética. Você começa observando que várias pessoas com dor de cabeça tomam café e logo os sintomas desaparecem. O café cura dores de cabeça, você diz. A pessoa cética rebate: "Vai ver a dor ia passar sozinha, não teve nada a ver com o café". Você, persistente, coleta observações sobre várias outras pessoas, algumas que quando têm dor de cabeça tomam café, outras que não tomam. E percebe que as que tomam café relatam que a dor passou.

Mais confiante, você procura o cético e anuncia mais uma vez que café cura dores de cabeça. Seu interlocutor diz: "Pode ser que as pessoas que tomam café sejam exatamente as pessoas que já sabem que café funciona para a dor de cabeça delas – talvez a dor seja causada pela abstinência do café. Mas isso não quer dizer que o café seja efetivo para todas as dores de cabeça".

Com o ânimo um tanto arrefecido, você decide empreender um estudo com manipulação experimental, para que seja mais fácil atribuir a resolução da dor de cabeça ao café - agora se aproximando do que Lind fez no navio. Você pega duas pessoas com dor de cabeça e joga uma moeda para escolher aquela que vai tomar café e a que não vai. Meia hora depois, só quem tomou café não está mais com dor de cabeça.

Revigorado, você afirma com mais convicção que o café cura dores de cabeça. O cético imediatamente retruca que um grupo de controle de uma pessoa é inexpressivo; que pode ser mera coincidência. Arrasado, e a essa altura já com dor de cabeça, você compra um café porque vai ter que virar a noite juntando mais pessoas com esse sintoma...

Claro que a ciência não é feita de modo tão simplista, mas essa discussão imaginária com o cético captura a essência do raciocínio por trás de um bom estudo. Ou seja, aquele que permita extrair com confiança as respostas que queremos – nesse caso, se o café cura dores de cabeça ou não. Você está sempre adicionando controles para lidar com as objeções que alguém faria.

Coletivamente, cientistas fazem esse papel de céticos uns dos outros, sempre buscando explicações alternativas para os resultados. Uma manipulação experimental diminui a força de uma dessas explicações alternativas – a de que o resultado é uma correlação, uma coincidência, mas que não implica uma causa.

Claro que um estudo por si só não é evidência conclusiva de nada, seja ele experimental ou observacional. Ciência se constrói com consenso, com evidência acumulada ao longo de vários estudos independentes. Em alguns campos de pesquisa, é bastante comum fazer revisões sistemáticas e meta-análises. Esses são estudos que tentam resumir toda a evidência acumulada a respeito de determinada questão.

E isso tampouco significa que estudos experimentais sejam inerentemente superiores a estudos observacionais. A confiabilidade de um estudo é uma propriedade do estudo, não do tipo de estudo. A vantagem de um estudo experimental em identificar causas não é uma boa razão para não ser crítico sobre aquele estudo em particular e considerar qualquer estudo experimental acima de um estudo observacional. Por exemplo, a conclusão de que cigarro causa câncer de pulmão, na década de 50, foi feita em cima de estudos observacionais.

É interessante pensar que não existe um método científico pronto e acabado. A própria ideia dos cientistas sobre o que leva um estudo a ser bom vai evoluindo ao longo do tempo, seja porque surgem novas técnicas estatísticas, seja pelo aparecimento de novas formas de manipular os objetos de estudo ou mesmo novos tipos de estudo – como quando Lind implementou uma intervenção experimental no navio e resolveu o problema local de escorbuto.

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Kleber Neves é neurocientista e gestor de Ciência no Instituto Serrapilheira.

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