Ciência Fundamental

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Prevendo o futuro com mercúrio em peixes

Para além de previsões astrológicas, a contaminação desses animais pode afetar até nosso cérebro

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Rossana Soletti

No início da década de 50, moradores da paradisíaca Baía de Minamata, um vilarejo de pescadores no sul do Japão, observaram que alguns gatos estavam agindo de forma estranha, com quedas, saltos e tremores acompanhados de miados aterrorizantes. A "febre dos gatos dançantes", como ficou conhecida, levou muitos animais a óbito.

Pouco tempo depois, a cidade começou a registrar casos de crianças e adultos com dificuldades para caminhar, quedas, problemas na fala e cognição, convulsões e perda de visão e audição. Ninguém conhecia as causas dos sintomas da "doença de Minamata", e para tentar elucidar esse mistério, deslocaram-se até o local equipes da Universidade de Kumamoto e do Ministério da Saúde.

Arte ilustra um peixe vermelho comendo outro peixe menor de cor laranja
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

Estudos epidemiológicos em 1956 encontraram 55 casos da doença e 17 mortes, e indicaram que os sintomas estavam associados à ingestão de peixes e mariscos provavelmente contaminados com algum metal pesado. Em 1959 foi apresentada a hipótese de que a origem da contaminação estaria nos despejos oceânicos da Corporação Chisso, uma indústria da região que produzia acetaldeído, matéria-prima para a manufatura de plásticos, e utilizava mercúrio como um catalisador.

O mercúrio era liberado no mar na forma inorgânica, mas pela ação de bactérias do ambiente transformava-se na forma mais prejudicial à saúde – o metilmercúrio, absorvido por plantas e animais. Uma vez no ambiente aquático, inicia-se o fenômeno de bioacumulação: as plantas são ingeridas por peixes, que por sua vez são ingeridos por peixes maiores, e cada um deles vai acumulando mais metilmercúrio. Quando outros animais ou humanos se alimentam desses peixes, contaminam-se e podem apresentar diversos sintomas, a depender da dose ingerida e acumulada.

Em nosso organismo, o metilmercúrio se liga a um aminoácido específico, e assim consegue atravessar a barreira cerebral e a placenta. Além disso, ao entrar nas células, prejudica diversas reações essenciais ao metabolismo.

As células do sistema nervoso estão entre as principais vítimas do metilmercúrio, e os neurônios em desenvolvimento são os mais sensíveis a seus efeitos tóxicos. Gestantes expostas ao mercúrio, mesmo assintomáticas ou com poucos sintomas, podem gerar bebês com graves alterações neurológicas. Assim, ainda que pontual, a exposição ao mercúrio pode comprometer várias gerações.

No caso de Minamata, em 2005 o número de pacientes com a doença chegou a 2.955. Por muitos anos, o número de recém-nascidos com paralisia cerebral na região foi extremamente alto, assim como os índices de perdas gestacionais e defeitos congênitos. Ainda que não existam alterações ou sintomas visíveis nos primeiros meses de vida, a exposição excessiva ao metilmercúrio pode trazer consequências anos depois, com redução em parâmetros de atenção, memória verbal, desenvolvimento motor e performance em testes de QI.

A despeito do que ocorreu em Minamata, os casos de grandes contaminações por metilmercúrio continuaram a ocorrer em diversos países, incluindo o Brasil. Estudos indicam que o povo Munduruku, no Pará, e Yanomami, em Roraima, apresentam níveis elevados de mercúrio. Em geral, a contaminação é maior justamente nas populações mais impactadas pelo garimpo ilegal. Há alguns anos os pesquisadores vêm alertando para essa realidade, incluindo os muitos casos de indígenas com alterações neurológicas e psicológicas, bem como crianças com atraso no desenvolvimento. A situação assemelha-se tanto à dos primeiros casos de contaminação por mercúrio registrados no mundo, que essa região amazônica é chamada por alguns de "a nova Minamata".

Análises indicam que os peixes, a principal fonte de proteína dessas comunidades, também estão contaminados, mas parar de comê-los não é uma solução plausível, inclusive porque o alimento é uma importante fonte de ácidos graxos essenciais para o desenvolvimento do sistema nervoso fetal. Pesquisadores e profissionais de saúde orientam gestantes a ingerir duas a três porções de peixe por semana, evitando as espécies carnívoras e no topo da cadeia alimentar.

Alterar o cenário de contaminação por metilmercúrio vindo de indústrias e mineração é essencial para um presente e um futuro saudáveis. Para muito além de previsões astrológicas, mercúrio em peixes pode representar uma tragédia anunciada e que deve ser fortemente combatida em todos os países.

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Rossana Soletti é doutora em ciências morfológicas e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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