Cozinha Bruta

Comida de verdade, receitas e papo sobre gastronomia com humor (bom e mau)

Boteco é lugar de criança

O bar há muito não é covil de cachaceiros e desocupados, mas tem gente que ainda não aceita isso

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São Paulo

Meu pai nunca me levou ao boteco.

Para o pai e a mãe, o boteco era lugar de vício. Antro de gente degenerada. Pinguços e fracassados afins que passavam o dia a jogar sinuca e fumar cigarro sem filtro com torresmo peludo.

Na minha família, essa história começou quando eu, já adulto, comecei a carregar o velho e a velha para biroscas, bodegas, bares e espeluncas.

Muito curioso foi vê-los perder o medo quando os tempos mudaram. Lá pelo fim do século passado, a indústria da cerveja injetou muita grana na repaginação da imagem do bar.

Bar sem teto cheio de gente
O bar Miúda, na Barra Funda, onde uma mulher foi proibida de entrar com o filho de 5 anos - Reprodução/Instagram

O covil de cachaceiros deu lugar ao boteco que serve bebidas bacaninhas, refeições a preços justos e petiscos nos trinques. O torresmo agora vem depilado.

Essa é uma visão paulistana. Emoutras capitais –notadamente Rio e Belo Horizonte–, o bar nunca foi de assustar a sagrada família brasileira.

O bar é o espaço da democracia. Do zelador que toma um café antes do expediente, da galera do almoço da firma, do velho solitário do bairro, dos amigos que saem do trabalho e precisam libertar os demônios.

Lugar de passar tardes preguiçosas com os filhos, por que não? Eu sempre levei os meus.

Há quem discorde. E não é a liga das senhoras católicas. São donos de bar que acolhem gay, hétero, preto, branco, gordo, macumbeiro, velho, cachorro, mula-sem-cabeça, curupira, todo mundo. Todo mundo, menos criança.

Criança barrada no bar dos hipsters

No domingo (3), a advogada Marcelle Cerutti foi impedida de entrar com o filho no bar Miúda, na Barra Funda. Trata-se de um velho estacionamento com chão de pedrisco, sem telhado e sem petiscos para acompanhar a birita na brita.

A Miúda atrai um público hipster, jovens (ou nem tanto) que cortam a própria franja sem espelho, usam pochete e sandálias engraçadas. Até eles se reproduzem às vezes, mas não podem levar os filhos à tarde no bar.

A atitude pegou muito mal. Marcelle soou a trombeta nas redes sociais, e meio mundo veio em seu apoio.

De início, os sócios da Miúda fincaram o pé. Soltaram um comunicado reiterando que seu bar "não é um lugar propício para crianças".

Velho, dá até medo de pensar em que os miúdos poderiam passar por lá. Será que alguém ia batizar o refri artesanal deles com tóchico? Será que lá no fundo tem uma mesa em que as pessoas jogam roleta-russa a dinheiro?

Obviamente, não. O que tem é a profunda antipatia por crianças, algo bem comum entre a rapaziada descolex que se julga inclusiva e plural.

Troque "crianças" por "cadeirantes". Agora imagine o escândalo se um estabelecimento os barrasse na porta sob a alegação de falta de estrutura adequada. "Desculpe, senhora, a roda da sua cadeira vai patinar no cascalho."

A resposta do bar gerou reprovação quase unânime, e só então os donos mudaram de postura. Voltaram ao Instagram para dizer que refletiram demais e que iriam pausar as atividades para repensar o espaço, retornando logo com pula-pula e piscina de bolinhas. A parte dos brinquedos é mentira.

Precisava ter a reputação quase destruída para dar o braço a torcer?

O lado bom desse episódio lamentável é a constatação de que todo mundo, até o hipster paulistano de franja torta, já entendeu que o bar é lugar de criança.

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