Cozinha Bruta

Comida de verdade, receitas e papo sobre gastronomia com humor (bom e mau)

Feijoada com ovo frito: você está pronto para isso?

Apego à tradição limita criatividade na cozinha: combinações que nossos pais não fariam parecem bizarras

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Lancei uma provocação nas redes sociais, hoje mais cedo. Escrevi o seguinte no Twitter:

"O brasileiro não está pronto para esse debate, mas... Um ovo frito de gema mole sobre a feijoada potencializa a maravilhosidade do prato-símbolo da nossa culinária nacional". Depois repeti a brincadeira nos stories do Instagram.

Eu almocei, de fato, feijoada com ovo frito. Tinha (ainda tenho) feijoada que preparei para o almoço de Dia dos Pais, mas já não tinha couve nem farofa. Comer só com arroz me pareceu um pouco sem graça. Sair para fazer compras estava fora de cogitação quando bateu a fome.

Feijão preto com um ovo frito com a gema mole estourada
Feijão campeiro do café da manhã do Parador Hampel, em São Francisco de Paula (RS). Tem outro nome, mas é feijoada com ovo frito - Marcos Nogueira

Aí lembrei que tinha comprado uns ovos frescos para caramba na feira de orgânicos do Parque da Água Branca. Boa. Um ovo frito para compor o almoço de terça-feira. Faltou equilíbrio, eu sei.

Faltou um verde, faltou textura, faltou algum componente ácido, sobrou gordura. Ficaria bem melhor com couve e laranja, a duplinha saudável da feijoada.

Mas não dá para dizer que arroz, feijão, carne de porco e ovo frito seja uma combinação estranha ou exótica. Muito menos que essa combinação desagrada o paladar brasileiro. Está no virado à paulista. Está em milhões de PFs servidos diariamente. Fica boa demais.

Eu nem tirei foto do prato de comida porque fiz um esquema bem tosco, pratão aquecido no micro-ondas, e a imagem ficou longe de ser bonita. Para ilustrar, pus a imagem de cinco anos atrás de um café da manhã no fabuloso Parador Hampel, em São Francisco de Paula, Serra Gaúcha. Café campeiro. Feijão campeiro, preto e espesso, com nacos de carne porco. E um ovo por cima.

É feijoada, mas tem outro nome. Faltou o arroz. Lástima.

Achei divertida a reação das pessoas à minha ideia não-tão-maluca. A maioria, ufa, entendeu o improviso. Os restantes –é destes que eu quero falar– manifestaram nojo e revolta em graus diferentes de seriedade.

Cozinhar é transformar, com processos físicos e químicos, ingredientes que você mistura. Essa mistura pode obedecer a fatores quase objetivos –equilíbrio entre ácido e doce, composição de texturas, propriedades nutricionais etc.–, mas sempre segue um padrão geográfico e cultural.

Os povos do Mediterrâneo comem tomate, berinjela, azeite, grão-de-bico e bebem vinho porque é o que a terra lhes proporciona. A gente come feijoada porque é um hábito português adaptado aos costumes e às condições do Brasil –há muito caiu a "hipótese senzala" para a invenção da feijoada.

A formação de um cozinheiro –formação informal, intuitiva– vem em três etapas. Na primeira, ele reproduz receitas consagradas. Em seguida, com algum domínio da atividade, improvisa dentro do repertório tradicional. Mais tarde ganha confiança e passa a experimentar fora desse repertório, embaralhando com a própria sensibilidade as informações que acumulou.

A terceira etapa é algo bastante comum na alta gastronomia, entre os cozinheiros que tiveram treinamento formal e cruzam, nem sempre com sucesso, os limites culturais da comida.

Nos níveis mais mundanos, no universo da comida que a gente realmente come, essa ousadia falha mesmo quando funciona. Peguemos o exemplo da comida japonesa e suas transas com elementos ocidentais.

Sushi com maionese ou cream cheese é sucesso de público e fracasso de crítica. Já a incorporação de elementos japoneses na culinária brasileira avança pouco além da comunidade nipônica, que faz feijão com gohan e tem um tempero que é só dela. Uma pena, pois o umami do missô vai bem com quase qualquer coisa.

Não temos mais restrição de circulação de pessoas e mercadorias. Dá para ciscar em outros terreiros, o que torna a vida muito mais interessante.

A rejeição às misturas diferentonas, em geral, não têm nada a ver com o conjunto de sensações do prato resultante. Quase sempre, é apego demasiado à tradição. O medo de contaminar a própria identidade com elementos estrangeiros; ou de corrompê-los fazendo algo diferente daquilo que aprendemos com nossos pais.

A feijoada com ovo se encaixa no último caso.

Bora comer feijoada com ovo frito.

Mas talvez você não esteja preparado(a)(e)(x) para isso.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais. Acompanhe os posts do Instagram e do Twitter.)

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.