Depois de um mês em Londres, pintou a chance de passear um pouco no outro lado do Canal da Mancha.
Em, Paris, desci na Gare du Nord. Como tinha algum tempo, fui a pé até a Gare de Lyon, de onde sairia meu próximo trem. No Boulevard Magenta, topei com o mercado Saint-Quentin. Não posso ver um mercado que já vou entrando. Entrei.
Fui a seis ou sete mercados de rua em Londres. São sempre um amontoado de barracas de comida típica de tudo quanto é lugar, com algum diferencial descolex, para um público que se crê a nata do cosmopolitismo.
Mesmo o Borough Market, que preserva um setor para as compras da feira livre, está todo gourmetizado e gentrificado em nos seus açougues, quitandas e peixarias.
Já o marché Saint-Quentin lembra o mercado de Pinheiros antes da infestação hipster. Parece o mercado da Ribeira, em Lisboa, quando ainda não era uma franquia de praça de alimentação –britânica, por sinal.
O Saint-Quentin tem um quê do mercado municipal de Atibaia, guardada a diferença monumental na variedade dos alimentos à venda.
É um mercado pequeno, bem menor do que o mercado da Lapa, com o habitual dos mercados de antigamente: carnes, peixes, queijos, salames, verduras, secos e molhados.
Eu me sentia em Amparo ou Varginha até ver, no açougue, ao lado dos bifes e bistecas, um animal felpudo –com pelo, pele, cabeça, orelhas, patas, rabicó, tudo intacto– em exposição, mortinho, mortinho.
Não sei dizer se era coelho ou lebre. Tampouco o chef Emmanuel Bassoleil, para quem enviei a foto, conseguiu tirar a dúvida. Então que seja coelho, imagem mais familiar para o imaginário brasileiro.
Claro que a visão do coelho defunto me impactou –do contrário, não escreveria sobre ele. Joguei o bicho morto nos stories do Instagram só para observar a brasileirada em choque com a barbárie gaulesa.
Mesmo na França, esse tipo de marketing medieval dos alimentos já está restrito às feiras dos bairros e da província. Nos supermercados da vida, o padrão é aquele que a gente conhece (até porque o varejo, no Brasil, está dominado pelos franceses): produtos fracionados e embalados na fábrica.
O consumidor urbano perdeu a noção da origem da comida. Pegue um frango: na minha longínqua infância, ainda havia avícolas em São Paulo que vendiam o penoso vivo ou abatido na hora. Era nojento.
Aí foi ficando limpo. O galináceo morto foi depenado, depenado acabou trinchado, as sobrecoxas ganharam temperos de sódio e nitritos, os cortes temperados foram cozidos e desfiados, prontos para meter no molho do macarrão ou no arroz.
Por fim, o rebotalho disso tudo virou salsicha e mortadela. Dá para entender por que tem criança que não sabe a relação da galinha com o nugget.
A aldeia do Asterix, último bastião do front ocidental, resiste ao império com um coelho peludo e morto a impressionar americanos e turistas afins.
Ou seria lebre? Não se sabe, mas uma coisa é certa: o comprador do bicho orelhudo e peludo não vai levar carne de gato para casa.
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