Darwin e Deus

Um blog sobre teoria da evolução, ciência, religião e a terra de ninguém entre elas

Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Presságios e vingança ritual revelam o mundo arcaico da Odisseia

Poema de Homero vem de um mundo onde a hospitalidade criava obrigações sagradas

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Li a Odisseia pela primeira vez há duas ou três décadas e só voltei a ter contato com o poema homérico de novo nas últimas duas semanas, quando tive a oportunidade de fazer uma releitura de cabo a rabo mais uma vez. É impressionante como o frescor do texto me atingiu em cheio.

Também reli a Ilíada não faz muito tempo, e me parece inegável que, para um leitor moderno, a Odisseia simplesmente funciona melhor. O ritmo é mais ágil, mais variado e surpreendente do que o da outra obra-prima de Homero, embora a Ilíada também consiga ser tremendamente comovente em diversos momentos.

serviçal lava os pés de amo em imagem com traços das ilustrações da Grécia Antiga
Cena do poema épico Odisseia ilustrada por Bruna Barros - Bruna Barros/Folhapress

Para os propósitos do blog, porém, gostaria de chamar a atenção para os aspectos mais arcaicos da história, capazes de nos transportar para um mundo radicalmente diferente do nosso, e que me apareceram diante dos olhos como se eu os estivesse vendo pela primeira vez. A gente tem a mania de classificar como "Grécia Antiga" qualquer período entre a Guerra de Troia e Alexandre, o Grande, mas o fato é que há um abismo entre o mundo homérico e os filósofos da Atenas de Péricles.

Curiosamente, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a importância dos presságios ou augúrios na história. Três vezes, se não me engano, seja no mundo real ou nos sonhos de um dos personagens, a imagem de uma águia atacando e matando um ganso é o prenúncio de que Odisseu/Ulisses está prestes a voltar para Ítaca, sua ilha natal, e se vingar dos jovens pretendentes que não cessam de lhe devorar os bens enquanto cortejam sua esposa, a casta Penélope. (Águias do Velho Mundo realmente caçam gansos, vejam vocês: testemunhei isso num documentário recente, apresentado pelo venerável Sir David Attenborough sobre a vida selvagem do Reino Unido.)

Outro tema que é um dos alicerces do épico aparece com força similar no Antigo Testamento: a sacralidade da hospitalidade. A maneira como os anfitriões acolhem Odisseu, seu filho Telêmaco e outras pessoas; a maneira como pai e filho se comportam quando são hóspedes; os laços de obrigações recíprocas entre os dois lados estão revestidos de uma sacralidade até mais intensa do que a que se vê nas cenas de sacrifícios de animais aos deuses.

E acho que isso explica um pouco da selvageria ("spoiler" para quem não leu ainda!) da vingança de Odisseu e Telêmaco contra os pretendentes e os escravos e escravas do palácio de Ítaca que os ajudaram de alguma forma. Há algo de ritualizado no massacre, como se um sacrilégio profundo ligado ao abuso da hospitalidade só pudesse ser vingado dessa maneira – mais ou menos como Deus lançando fogo sobre Sodoma e Gomorra no livro do Gênesis, por motivos semelhantes.

Enfim, nada do que eu escrever aqui vai substituir o contato com o poema. Leiam!

Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

Repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de "Homo Ferox" e "Darwin sem Frescura", entre outros livros

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