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Mulheres sub-representadas e causas invisíveis da desigualdade

Medida transitória supera a ideia de mera paridade nas cortes, diz ex-PGR

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Sob o título "Razão e Escolha", o artigo a seguir é de autoria de Raquel Elias Ferreira Dodge, ex-procuradora-geral da República (*)

Raquel Dodge analisa a sub-representação das mulheres
Raquel Elias Ferreira Dodge, ex-procuradora-geral da República, e sede do CNJ (Conselho Nacional de Justiça - Pedro Ladeira/Folhapress e Agência CNJ/Divulgação

Faz 35 anos que uma nova Constituição vigora no Brasil. Desde então, acaso e força, empregados em vários períodos ditatoriais desde a Proclamação da República, cederam lugar a razão e escolha como critérios de governança na construção da democracia brasileira, que tem por fundamentos a igualdade política de todas as pessoas, a proteção de direitos fundamentais e a supremacia do eleitor.

Razão e escolha devem, portanto, presidir a atuação dos três Poderes da República, e escoimar preconceito, discriminação e desigualdade nas relações privadas e nas leis, nas políticas públicas e nas decisões judiciais, pois são vedados pela Constituição.

A desigualdade é a nódoa mais nítida da realidade brasileira. Fere a democracia. Persiste em escala inaceitável, porque tem muitas causas invisibilizadas. Mantém uma grande parte da população na miséria, fomenta agressão doméstica contra mulheres, encarcera predominantemente negros e pobres, nutre a letalidade policial. A desigualdade de gênero na sociedade confina as mulheres a condições sociais de grande vulnerabilidade.

A participação feminina em espaços de governança, como as Cortes de Justiça, é parte do debate sobre igualdade política há muitos anos. Incluir as mulheres nos espaços de poder valoriza a ideia de que a perspectiva feminina na tomada de decisões pode reduzir discriminações que elas e outras minorias sofrem e transformar a realidade, tornando-a mais igualitária e justa.

Segundo o CNJ, desde a Constituição de 1988 até 2022, aumentou a entrada de mulheres na magistratura, de 24,6% para 40%; mas, após as promoções por antiguidade e por merecimento, há uma média de 25% de mulheres nos Tribunais intermediários, sendo que em dois Estados e em um TRF não há desembargadoras.

Nos primórdios da democracia, as mulheres apontaram o déficit de participação decisória como causa invisível das discriminações estruturais que sofriam. Reivindicaram direitos políticos porque leis aprovadas sem sua opinião as excluía da gestão de seus bens quando se casavam; negava-lhes acesso à educação; sonegava-lhes garantias de integridade sobre o próprio corpo; e as mantinha indefesas diante da violência doméstica, embora lhes cobrassem tributos.

Após adquirir direitos políticos, as mulheres tiveram direitos civis ampliados, mas persiste a desigualdade acentuada na vida pública e na vida privada.

No Brasil de agora, as mulheres reivindicam uma ação afirmativa ao Conselho Nacional de Justiça até que alcancem paridade na composição dos Tribunais intermediários, que têm o poder de reformar as decisões judiciais e uniformizar regionalmente a aplicação da Constituição e das leis.

O propósito desta medida transitória é substantivo. Supera a ideia de mera paridade na composição das Cortes.

Na proposta em exame, incluir a participação da mulher magistrada na interpretação das normas pelos tribunais significa incluir a perspectiva feminina, que é a da metade da população, na tomada de decisões sobre os conflitos descritos nos processos, ampliando a qualidade do debate e a igualdade política na sociedade, que é fundamento da democracia.

Desde que os estudos sobre Realismo Jurídico (Frank, 1889-1957 e Llewelyn, 1893-1962) revelaram que preferências políticas e morais de magistrados operam efeitos concretos na aplicação das normas, dando margem à discriminação indireta e à manutenção de preconceitos, as mulheres têm se recusado a deixar que a discussão sobre os significados das leis seja travada apenas pelos homens.

Amparam-se na ideia libertadora, que impulsionou o movimento no taxation without representantion e o movimento sufragista, de que uma das principais qualidades da democracia é a representação própria nos espaços decisórios de que somos destinatários. A ação afirmativa aumenta a representação feminina nas Cortes que interpretam e aplicam as leis que regem todas as pessoas e, por isso, nelas as mulheres não podem estar sub-representadas .

A Constituição não opera efeitos mágicos. São critérios de razão e escolha em sua aplicação que criam a base da igualdade política e fortalecem a democracia. A proposta de ação afirmativa em exame no CNJ visa resolver uma das causas invisíveis de nossa desigualdade.

(*) Raquel Elias Ferreira Dodge, ex-PGR, LL.M. 07 Harvard

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