Guia Negro

Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias
Descrição de chapéu Consciência Negra

Como o racismo opera e que o vem depois da Justiça?

Condenação reconhece violência institucional do Estado por perseguir Caminhada São Paulo Negra, mas o que acontece agora?

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Guilherme Soares Dias
São Paulo

O racismo é um crime perfeito. A definição é do antropólogo e professor Kabanguele Munanga sobre a estrutura racial que organiza a sociedade brasileira. A perfeição descrita por ele está na dificuldade de reconhecermos o racismo ao nosso redor e em nós mesmos; um crime sem autor; com sofisticações alarmantes que chega a transformar algozes em vítimas e vice-versa.

Nesse cenário, como seria possível processar e ganhar do Estado num caso de racismo? Foi o que conseguimos essa semana. O Guia Negro é uma plataforma de turismo que produz conteúdos (como os dessa coluna), faz consultoria em diversidade e realiza experiências turísticas. Os passeios foram batizados de Caminhada Negra e são realizados desde 2018, transformando-se em ação antirracista para empresas e escolas, além de uma nova forma de conhecer as cidades.

Caminhada São Paulo Negra realizada no mês da Consciência Negra ( Foto: Karime Xavier / Folhapress) . ***EXCLUSIVO***POLÍTICA - Folhapress

Em 24 de outubro de 2020, anunciamos o tour pelo Facebook e retomamos a atividade após meses de recolhimento por conta da pandemia. Tínhamos um grupo reduzido e máscaras. No início da atividade, dois policiais abordaram Heitor Salatiel, que era um dos organizadores do roteiro. Ele explicou que ali tínhamos um tour feito por uma empresa e não uma manifestação.

Mesmo assim, a polícia nos perseguiu. Foram três quilômetros, durante três horas, em que nos esperaram sair de um dos espaços que entramos, estiveram de moto, de cavalaria e com viaturas. Fomos constrangidos e nos sentimos humilhados, esquecendo parte das falas daquele roteiro turístico que promovíamos com clientes pagantes.

Nosso direito de ir e vir estava cerceado. Mas sabíamos exatamente o que estávamos sofrendo: racismo estrutural. Afinal, na caminhada contamos como a polícia perseguiu o samba, o funk, as religiões de matriz africana, a capoeira e como até hoje são as pessoas negras os maiores alvos de abordagens truculentas e também de mortes.

Contatamos um amigo advogado que nos desaconselhou a buscar justiça, pois seria só mais um caso de racismo, de difícil comprovação, e que "não ia dar em nada." Ao procurar a Delegacia de Crimes Raciais para denunciar o crime fomos recebidos por uma delega branca, que ironizou o caso. Entramos com uma ação, via defensoria pública, por danos morais coletivos.

A sentença que saiu essa semana, mostra que a Justiça vem evoluindo e reconhece a atuação discriminatória, com contornos nítidos de racismo institucional. Uma decisão histórica, em que o texto do juiz Fausto Dalmaschio Ferreira, não deixa dúvidas de que houve violência institucional por parte dos agentes do Estado.

De acordo com o juiz, houve "abordagem seletiva e o acompanhamento do grupo pela Polícia Militar, sem justificativa fundamentada em elementos concretos, teve o condão de lesar a condição dos negros enquanto sujeitos" (…) "uma injustiça no tocante à restrição e constrangimento da iniciativa do grupo de turismo de revelar, ilustrar e propriamente construir o conhecimento da cultura e história negras no Centro de São Paulo".

Ao mesmo tempo, o Estado se recusa processualmente a reconhecer que o acompanhamento da "Caminhada São Paulo Negra" se revestiu de caráter discriminatório. Enquanto o juiz considera que não houve justificativas concretas para a abordagem e acompanhamento do tour e o Estado estava ciente desde o início do objetivo do evento e considera que "não se vislumbra outra explicação senão o perfilamento racial".

O Ministério Público também endossa que os danos causados foram comprovados. "A atuação da polícia militar, gerou situação humilhante, e como consequência, ainda, tolheu os profissionais da empresa e as demais pessoas do grupo da liberdade de ir/ficar/permanecer, sem embaraço, em espaço público e exercer o seu direito à cultura, no seu caráter difuso, como já exposto. O dano para toda a coletividade, portanto, é inegável."

A sentença condena o Estado de São Paulo a pagar R$ 750 mil que deverão ser aplicados em um fundo para projetos culturais e turísticos em favor da população negra. É importante lembrar que o Estado ainda pode recorrer e que a decisão na segunda e última instância pode mudar. Mas o caminho aberto por essa ação e o reconhecimento, pela justiça, do racismo institucional por parte do Estado são uma vitória não apenas para o Guia Negro, mas para todo o povo preto.

A decisão do caso mostra que o próprio Estado não aceita mais esse tipo de violência. Mas sabemos que situações de racismo como essa continuam e continuarão ocorrendo, mas agora entendemos que eles podem ser punidos e, para isso, precisamos denunciar e judicializar, mesmo que as condições não pareçam favoráveis e que o tempo de resposta seja maior do que gostaríamos.

No caso do turismo, é importante lembrar que ainda é espaço de privilégio e de reprodução do racismo, mas também tem servido para a construção de instrumentos antirracistas. Afinal, a primeira lei que proibia a discriminação racial no Brasil, batizada de Afonso Arinos, de 1951, foi proposta após a bailarina norte-americana Katherine Dunham ser impedida de se hospedar num hotel luxuoso de São Paulo por ser negra.

A lei só foi usada pela primeira vez em 1970, pela, então, repórter Glória Maria, impedida de entrar pela porta da frente de um hotel no Rio de Janeiro pelo próprio gerente. "Racismo é uma coisa que eu conheço, que eu vivi, desde sempre. E a gente vai aprendendo a se defender da maneira que pode", afirmou ela, em entrevista em 2019.

A história mostra que é preciso resiliência, consciência e consistência para combater o racismo, esse crime complexo e perfeito. Muitos dos nossos abriram caminhos e continuamos essa trilha. Fica a esperança de que o fundo criado pela ação possa ser usado para a formação de policiais na cultura e história negra, o afroturismo, para que eles nunca mais voltem a nos criminalizar. Ou seja, vencemos uma batalha, importante, mas continuamos na luta. Racistas não passarão!

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