Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Leitura se tornou uma das atividades mais acessíveis para cegos

No aplicativo do celular, no aparelho de som ou em braille, limitações para o acesso à literatura vêm diminuindo rapidamente

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São Paulo

Laureado com o prêmio Nobel de literatura, o escritor peruano Mario Vargas Llosa, de 88 anos, disse em uma entrevista de 2022 à TV Espanhola, descoberta por mim nesta semana, que seu maior medo era perder a visão, pois isso o impediria de seguir lendo até o fim da vida.

Para mim também, os livros são fundamentais, incluindo os de Vargas Llosa, que venho escutando em sequência neste ano. Perdi praticamente toda a visão, mas jamais deixarei de tê-los como companheiros.

No início, bastava uma luminária bem forte e eu conseguia ler de tudo. Mas aos poucos ler se tornava algo demorado, cansativo. Para dar conta de terminar as leituras que precisava para a faculdade em tempo, passei a pedir ajuda da minha mãe e do meu irmão, que liam em voz alta para mim.

Minha saga para não me afastar dos livros conforme a visão diminuía, especialmente a partir dos 20 anos, começou com o uso de lupas eletrônicas, que, além de ampliar os textos, tornava o fundo escuro e as letras claras, contraste que me facilitava a leitura. Porém era difícil fazer a passagem de uma linha para a outra com o equipamento, a posição era ruim e o processo todo lento e cansativo para o corpo e a mente.

Menos de um ano depois já parti para escanners especializados em digitalizar textos para que fossem convertidos em voz. Um grande progresso. Ficava sentado em frente ao computador por horas segurando livros abertos, enquanto uma câmera do aparelho fotografava uma página por vez, que eu escutava após alguns segundos. Mas o sistema deixava de registrar parte das folhas, em especial próximas à dobra do livro. Ficavam palavras incompletas por todas as frases. Com isso, ou eu tentava adivinhar o que estaria escrito pelo contexto,ou repetia o processo várias e várias vezes até conseguir uma página totalmente compreensível.

Também houve a época dos livros em CD. Alguns deles eu comprava em livrarias, às vezes numa estante meio escondida, que misturava poucos clássicos da literatura e best-sellers do momento. Outros pegava emprestado na biblioteca da Fundação Dorina Nowill, que existe até hoje e agora fornece os títulos digitalmente.

A seguir vieram os aplicativos de leitura para celulares e tablets. Comprei um iPad sem nunca ter usado leitores de tela da Apple e nem a certeza de que o sistema, que transforma textos da tela do aparelho em voz, funcionaria em livros comprados online. Isso em um tempo em que eu ainda preferia celulares com botões aos smartphones mais modernos e achava que touch screen deixaria tudo mais difícil para mim e quem tinha alguma limitação na visão, no que estava equivocado.

Foi a melhor experiência de leitura que já tive. Com um gesto, o celular passa a ler a partir de um ponto do livro em diante. Ao tocar a tela com dois dedos, o texto é pausado. Com facilidade também posso mudar de página, pesquisar por palavras desejadas ou navegar por linhas, palavras e caracteres.

No início, há mais de dez anos, o acervo era escasso. Ao ler uma notícia de jornal sobre um livro interessante, já vinha a dúvida se estaria disponível para mim em formato digital. Na maioria das vezes, não estava. Lembro até que a Amazon tinha um botão que eu clicava bastante para enviar um pedido para que a editora da obra disponível apenas fisicamente publicasse um e-book.

Tudo foi mudando devagar, sem solavancos que permitissem me dar conta de como o cenário é diferente hoje. Por esses tempos fui atrás de livros de outra ganhadora do Nobel, a francesa Annie Ernaux. E, como já tem se tornado a regra, os principais livros dela estão disponíveis para mim, desde "O Lugar", o primeiro, até o mais celebrado, "Os anos". Finalmente posso reler "A Insustentável leveza do Ser", de Milan Kundera, livro da minha adolescência que esperei por anos até que fosse publicado eletronicamente para ter a oportunidade de checar se continuo achando tão bom. Assim como uma porção de livros do Rubem Alves, do Saramago, Rosa Montero, Herman Hesse, Gabriel Garcia Márquez, Homero, e muitos e muitos outros. A probabilidade de não encontrar algo que gostaria diminuiu sensivelmente.

Os livros digitais são meus preferidos, pela facilidade de ajustar a velocidade de leitura e pela navegação rápida no texto, mas não são a única opção. Os audiolivros estão em rápida ascensão, com a chegada de novas empresas ao mercado brasileiro, incluindo autores e atores fazendo leituras de altíssima qualidade. Também há muitos grupos de WhatsApp destinados a enviar livros em mensagens de áudio, com frequência leituras amadoras de voluntários para pessoas cegas.

Isso sem falar em uma invenção do Século 19, o sistema braille. Para quem prefere ouvir a própria voz interior, em vez de um leitor externo, seja real, seja robótico, ler com as mãos seguirá sempre uma opção. E a leitura tátil é a mais importante de todas para quem está em período de alfabetização, para que possa aprender de fato a grafia das palavras e o uso dos sinais de pontuação, em vez de só escrever "de ouvido".

De uma década para cá, a leitura foi de uma atividade em que dependíamos da sorte para encontrar algo que nos interessasse para se tornar uma das atividades mais acessíveis para pessoas com deficiência visual. Já não é mais preciso comprar aparelhos caros e que funcionam parcialmente, como eu fiz, basta um celular comum.Seja escutando seja tateando, ninguém precisa deixar de viajar e aprender com os livros por conta da falta da visão.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa - PIERRE-PHILIPPE MARCOU - 22.abr.2022/ AFP

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