Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu

Pode amar: o amor contra o ódio na música de Maíra Garrido

Quando a existência é sinônimo de resistência

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foto da cantora Maíra Garrido na capa do seu álbum Pode amar

Maíra Garrido lança álbum sobre amor, união de mulheres, resistência e combate ao ódio e ao preconceito Júlia Assis

Quando ouvi o single "Pode amar", da cantora Maíra Garrido (feat com Juliana Linhares), no início do ano, senti uma urgência de a entrevistar aqui para o blog.

Maíra é uma cantora carioca, queer, gorda e lésbica que une duas coisas em que acredito muito: o poder da música e o poder do amor

O verso "Juntas a gente se aquece, se abraça e esquece das dores do mundo" me fez lembrar um evento que fiz com a Camila Appel no dia 8 de março do ano passado, ao qual dei o nome de "quando protegemos uma mulher, salvamos todas nós".

O Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo. O quinto, para ser mais exata. E o primeiro no ranking dos homicídios de pessoas homossexuais e transexuais. O Brasil é um país extremamente violento.

Sei que vivemos em um mundo em guerra. Aliás, guerras. Além da Ucrânia, ao menos 27 países registraram conflitos ou combates armados no início de 2022. Mas também temos as nossas próprias por aqui. Para se ter uma ideia, no período de 18 de fevereiro de 2021 a 18 de fevereiro de 2022, houve 3063 atos de violência contra civis no território brasileiro.

No último dia 18, a Maíra lançou o álbum "Pode Amar", com cinco faixas. Além de "Pode amar", "Alma de Criança", "Âmbar", "Segue teu rumo" e "Ventania (Afeto-Esmola)". No dia do lançamento, ela escreveu no seu perfil no Instagram que "quando a gente é LGBTQIAP+ [lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis, queer, intersexo, assexuais, pansexuais e demais orientações sexuais e identidades de gênero] no país que mais comete crime contra nossa comunidade, e a gente é artista e, acima de tudo, toma a arte como missão de vida, a gente entende que nosso trabalho também existe para defender a nossa existência. Pra não permitir que nos invisibilizem no meio das massas. Quero que esse disco simbolize o meu grito frente à demanda constante de padronização que nos é imposta desde sempre".

Quando eu falei com a Maíra pela primeira vez sobre esta entrevista, no início de fevereiro, ela me disse que lançaria o álbum em março. Perguntei se o lançamento havia sido escolhido para março em razão de alguma data LGBTQIAP+.

A resposta dela me tirou o chão. Março é o mês da mulher.

Óbvio. Mas um óbvio que eu não vi.

O feminismo branco, cis, heteronormativo pode ser danoso, ela me lembrou. Março é o mês da mulher cis hetero mãe padrão tanto quanto é o mês da mulher lésbica e gorda. Das mulheres trans, das mulheres solteiras, das mulheres negras e periféricas. De todas as mulheres.

Maíra escreveu que o seu primeiro disco é um atestado da sua existência e da sua resistência artística e social.

Confira a entrevista que fiz com ela no último dia 8 de março:

Morte sem tabu: Nos últimos tempos, o termo "artivismo" ganhou espaço para representar manifestações artísticas que são formas de ativismo social. "Pode amar" é uma música que representa bem isso. As outras músicas de "Pode amar" também são uma espécie de artivismo?

Maíra Garrido: Eu costumo dizer que todas as músicas que eu cantar serão músicas de artivismo e resistência. Eu não sou uma pessoa padrão, então quando eu coloco a minha voz no mundo, qualquer que seja o assunto, é um ato de resistência. E no Brasil de Bolsonaro, só de estar viva, já é um ato de resistência. Viva e feliz, viva e casada e viva e vivendo meu amor de fato é outro patamar de existência, de resistência. Qualquer coisa que eu faça no mundo em termos artísticos será sempre um posicionamento político.

Mas, em um sentido mais direto, quase todas as músicas do álbum são, sim, ativistas. Em uma das músicas, canto que "nós todos juntos somos resistência, nós todos juntos somos esperança". Em outra, falo sobre uma relação lésbica. Uma terceira música fala sobre uma relação tóxica, que, ao contrário do que as pessoas pensam, acontece muito nas relações homoafetivas. Mas esse é um assunto menos falado na nossa comunidade, porque já existe uma dificuldade tão grande para as pessoas aceitarem os nossos amores, que sugerir isso poderia aumentar ainda mais as violências que sofremos.

Morte sem tabu: O Brasil é um dos países que mais mata mulheres no mundo. O país que mais mata homossexuais. Que mais mata pessoas trans. A música pode mudar isso?

Maíra Garrido: Nós somos uma sociedade hipócrita. O Brasil é o país do samba e do carnaval, o samba tem origem africana, mas somos um país extremamente racista. Somos o país de uma das maiores paradas do orgulho LGBTQIAP+ do mundo, uma referência nisso, e somos o país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo.

Mas eu acredito no poder de transformação da música. O mote do meu disco é exatamente a crença na capacidade de transformação pela música. Eu acredito de verdade que a minha música pode tocar o coração das pessoas neste lugar, no poder de existir como a gente é. Através da força que o amor tem, a partir do momento em que a gente pode enxergar o outro como um ser humano potente, inteiro, dentro das suas individualidades e características. Quando a gente começa a enxergar a diversidade como um trunfo, e não como algo a se repelir.

E eu espero que minha música possa ajudar nesse movimento. Não sozinha, mas nesse movimento comunitário. Eu acredito que a minha arte e a minha forma de me posicionar contribuem positivamente para que isso mude.

Morte sem tabu: O amor pode mudar o mundo?

Maíra Garrido: Eu acho que a força da raiva existe, porque a gente ama algo. A gente ama a tradição, então temos raiva do que vai contra ela. Antes da raiva, o que existe é o amor por alguma coisa. Mas um amor que não movimenta as águas da vida é um amor estancado.

Eu realmente sofro por não entender por que as pessoas são tão agressivas umas com as outras, por que não pode haver respeito entre as existências. Não é uma escolha ser de determinado jeito, amar de determinado jeito. A escolha é de quem escolhe reprimir o amor.

Uma das coisas que mais me fere é saber que há pessoas que não conseguem amar as outras, por serem como são, por existirem de determinada maneira.

Morte sem tabu: Além de exaltar o amor de variadas formas, você fala muito sobre gordofobia. As pessoas muitas vezes desrespeitam corpos gordos, desrespeitam o valor que deveríamos reconhecer em cada ser humano apenas por ser humano, dizendo que estão falando sobre saúde. A obesidade é de fato um problema de saúde pública, mas muitas pessoas gordas não sentem que essa é a verdadeira questão que impulsiona tanta gente a falar sobre ela. Quer falar um pouco sobre isso?

Maíra Garrido: Acompanhando os movimentos antigordofobia, fica cada vez mais claro para mim que não é sobre saúde. O que interessa para as pessoas é ver o corpo que elas consideram aceitável circular na sociedade. As vezes em que eu mais emagreci na vida foram as vezes em que eu estava pior, que minha saúde física e mental não estavam bem.

É muito chato passar uma vida inteira ouvindo as pessoas valorarem o meu trabalho a partir do meu corpo. As pessoas gordas tendem a ser ainda mais invisibilizadas. Se eu fosse uma pessoa queer com um corpo padrão, eu teria muito mais espaço do que tenho sendo gorda. Meu sucesso depende de um esforço muito maior, mesmo que em relação a outras pessoas LGBTQIAP+. A comunidade lésbica, inclusive, é muito gordofóbica.

Eu não sou médica, não sou nutricionista, para avaliar sobre a questão da saúde nesse universo. Mas para mim, individualmente, nunca foi sobre isso.

Cynthia Pereira de Araújo

Doutora em Direito pela PUC-Minas, com doutorado-sanduíche pela Universidade de Vechta/Alemanha (bolsista Capes-Daad). Autora da obra "Existe Direito à Esperança? Saúde no Contexto do Câncer e Fim de Vida". Advogada da União.

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