Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu
Mente

No folclore brasileiro, a morte topa negociar

Escritor colhe contos de enganar a morte

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Zé Malandro não queria morrer. Nenhum dos protagonistas do livro "Contos de Enganar a Morte" toparam aceitar o fim. Quando que se deparavam com a figura feminina, ossuda e de capa preta, tratavam de arrumar uma forma de enganá-la.

Para nosso deleite, conseguem. Por um simples motivo: essa morte da nossa cultura popular topa negociar. E vai dando alguns anos a mais para o corajoso que tem um plano promissor para enganá-la.

O livro é o resultado de uma pesquisa do escritor de livros para crianças e doutor em Letras pela USP, Ricardo Azevedo. Ganhou o segundo lugar do prêmio Jabuti em 2004. Foi publicado pela editora Ática, em 2003.

Ricardo pesquisou contos populares que são transmitidos pelo país há anos. Ele colheu contos, como diz. Mergulhava nas bibliotecas dos diferentes estados em busca de livros que reunissem esses contos. Encontrou pesquisadores como Câmara Cascudo e Lindolfo Gomes.

Ele percebeu que as mesmas histórias apresentavam pequenas variações dependendo da região. E mais. Ricardo identificou grupos de contos.

O grupo de contos de adivinhação, por exemplo, traz heróis, que para não morrer, precisam adivinhar um enigma. Nos contos de enganar a morte o herói tenta enganar e adiar a morte. Contos de bicho do mato são os que trazem a luta do mais fraco contra o mais forte. Como o macaco que convence a onça a poupá-lo, ou o bicho mais lento conseguindo superar o mais rápido, a tartaruga e a lebre. Em geral, o lado mais fraco é o povo. Essas histórias são inventadas pelo povo.

Também há os contos de espanto e alumbramento. Alumbramento é um encantamento, uma iluminação. O herói está caminhando na estrada e encontra uma mulher que é uma só uma cabeça e diz "estou há cem anos encantada, você precisa me ajudar".

Entre nossos pais e avós, essas histórias eram transmitidas oralmente, o que sempre trouxe admiração aos mais velhos. Eles tinham o poder do conhecimento. Ricardo cita um pensamento de Max Weber ao comparar que o homem mais velho hoje se vê angustiado por uma enorme contradição: enquanto a ciência e a tecnologia se desenvolvem continuamente, o homem se olha no espelho e se vê envelhecendo.

Ricardo guarda uma forte e específica lembrança da sua infância. Um dia, a professora entrou e disse que o pai de um colega tinha morrido afogado. O susto e o pavor foram tão grandes, que Ricardo, ao tornar-se adulto, começou a achar prejudicial isolarmos crianças de experiências relacionadas à morte. Passou a incentivar a leitura de livros com o tema, a participação em velórios e enterros.

Em seu blog, ele justifica a importância do livro:

"Falar sobre a morte com crianças, é preciso deixar claro, não significa entrar em altas especulações ideológicas, abstratas e metafísicas. Nem em detalhes assustadores e macabros. Refiro-me a simplesmente colocar o assunto em pauta. Que ele esteja presente, através de textos e imagens, simbolicamente, na vida da criança. Que não seja jamais ignorado. Isso, note-se, nada tem a ver com depressão, morbidez, falta de esperança ou niilismo. Ao contrário, a morte pode ser vista, e é isso o que ela é, uma referência concreta e fundamental para a construção do sentido da vida. Existem assuntos sobre os quais adultos sabem mais e podem ensinar crianças. Entre eles não se encontram, por exemplo, a paixão, o sublime, a determinação da realidade e da fantasia, o sonho, a temporalidade e a busca do auto-conhecimento. Nem, muito menos, a morte e a mortalidade. Diante de assuntos assim, é preciso reconhecer, adultos e crianças sentem-se igualmente despreparados.

É muito bom quando a criança consegue se identificar com um adulto e descobrir, surpresa: "Puxa, ele é igual a mim! Ele também fica confuso, tem medo e não sabe direito! Ele também se emociona e chora!". Para a formação das crianças é essencial que surjam espaços de compartilhamento entre elas e os adultos. Crianças da vida rural, em geral muito pobres, costumam ter um contato bem mais sadio e natural com a morte. Dizia Walter Benjamim, sobre a época medieval, que naquele tempo "não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém". O mesmo pode-se afirmar da vida rural e de muitos bolsões de pobreza urbana hoje no Brasil.

Lamentavelmente, a vida na sociedade tecnológica e de consumo, entre outros fatores, acabou por higienizar e expulsar a morte do universo dos vivos. Isso tem tido um grande reflexo na vida das pessoas, nas famílias e nas escolas. Para ficar num exemplo, os jovens que assassinaram o pataxó Galdino de Jesus, alunos de escolas consideradas ótimas, talvez não fizessem o que fizeram se tivessem tido a chance de meditar um pouco mais sobre a mortalidade e a condição humana. Tento dizer que a violência de nossos dias pode ter a ver, entre muitos outros fatores, com o processo de alienação e ocultação da morte. Crianças e jovens precisam aprender a lidar com a vida, da qual a morte é parte inseparável. Pretender camuflá-la ou escondê-la é um desrespeito à inteligência e à capacidade de observação de qualquer ser humano. Além do que é completamente inútil.

Daí, a meu ver, a importância desses antiqüíssimos Contos de enganar a morte, narrativas populares que têm como ponto comum o herói que tenta vencer a morte. Com sua poesia, graça e magia, além de levantarem o assunto possibilitando, portanto, uma interessante reflexão, são, com certeza, uma verdadeira, divertida e apaixonada declaração de amor à vida".

Aproveito para publicar um desses contos aqui, com a autorização do autor:

O HOMEM QUE ENXERGAVA A MORTE

Era um homem pobre. Morava num casebre com a mulher e seis filhos pequenos. Vivia triste e inconformado pela miséria em que vivia.

Um dia, sua esposa engravidou de novo. Assim que o sétimo filho nasceu, o homem disse a mulher:

-Vou ver se acho alguém que queira ser padrinho de nosso filho.

Temia que ninguém quisesse ser padrinho da criança, arranjar padrinho para o sexto filho já tinha sido difícil. Quem ia querer ser compadre de um pé-rapado como ele?

E lá se foi o homem andando e pensando e quanto mais pensava mais inconformado e triste ficava.

Mas no tempo, ninguém consegue colocar rédeas.

O dia passou, o sol caiu na boca da noite e o homem ainda não tinha encontrado ninguém que aceitasse ser padrinho de seu filho.

Desanimado, voltava para casa, quando deu uma grande ventania... que levantou poeira em seus olhos e surgiu uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala de osso. Com voz baixa ela ofereceu-se:

-Se quiser, posso ser madrinha de seu filho.

-Quem é você? Perguntou o homem.

A figura respondeu: - Sou a Morte.

O homem não pensou duas vezes:

-Aceito. Você sempre foi justa e honesta, pois leva para o cemitério todas as pessoas, sejam elas ricas ou pobres. Sim, quero que seja minha comadre, madrinha de meu sétimo filho!

E assim foi. No dia combinado a Morte apareceu com sua capa escura e sua bengala de osso. O batismo foi realizado com muita festa e comida farta oferecida pela madrinha. Após a cerimônia, a Morte chamou o homem de lado.

-Fiquei muito feliz com seu convite. Já estou acostumada a ser maltratada. Em todos os lugares por onde ando as pessoas fogem de mim, falam mal, xingam... Essa gente não entende que não faço mais do que cumprir minha obrigação. Já imaginou se ninguém mais morresse no mundo? Não ia sobrar lugar para as crianças que iam nascer! Você é a primeira pessoa que me trata com gentileza e compreensão.

E disse mais:

-Quero retribuir tanta consideração. Pretendo ser uma ótima madrinha para seu filho. E por isso vou transformá-lo numa pessoa rica, famosa e poderosa. Só assim, você poderá criar, proteger e cuidar de meu afilhado. A partir de hoje você será um médico.

-Médico? Eu? - perguntou o sujeito, espantado. – Mas eu de medicina não entendo nada!

-Preste atenção -disse ela. Volte para casa e coloque uma placa dizendo-se médico. De hoje em diante, caso seja chamado para examinar algum doente, somente você poderá me enxergar. Se eu estiver na cabeceira da cama, isso será sinal de que a pessoa ficará boa, se me enxergar no pé da cama o doente logo, logo vai esticar as canelas.

E nesse instante soprou um vento gelado, e a morte disse: - Daqui pra frente – você vai ter o dom de conseguir enxergar a Morte cumprindo sua missão. O homem pegou prego e martelo escreveu MÉDICO numa tabuleta e a pregou bem na frente de sua casa. Logo apareceram as primeiras pessoas adoentadas.

O tempo passava correndo feito um rio ninguém vê.

Enquanto isso, sua fama de médico começou a crescer, pois ele não errava uma. O doente podia estar muito mal e já desenganado. Se ele dizia que ia viver, dali a pouco o doente estava curado. Em outros casos, às vezes a pessoa nem parecia muito enferma, mas se o médico dissesse que não tinha jeito, não demorava muito e a pessoa batia as botas.

A fama do homem pobre que virou médico correu mundo. E com a fama veio a fortuna. Como muitas pessoas curadas costumavam a pagar bem, o sujeito acabou ficando rico.

Mas o tempo é um trem que não sabe parar na estação. O sétimo filho do homem, afilhado da Morte, cresceu e tornou-se adulto.

Certa noite, bateram na porta da casa do médico. Quando o médico abriu soprou uma forte ventania e apareceu uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada numa bengala de osso, que falou em voz baixa:

-Caro compadre, tenho uma notícia triste: sua hora chegou. Seu filho já é homem feito. Estou aqui para levar você.

O médico deu um pulo da cadeira. – Mas como! Fui pobre e sofri muito, agora tenho profissão, ajudo as pessoas, tenho riqueza e fartura, você aparece pra me levar! Isso não e justo! O médico não se conformava. E argumentou, e pediu, e suplicou tanto que a Morte resolveu conceder mais um pouquinho de tempo.

-Só porque somos compadres, só por ser madrinha de seu filho, vou dar mais um ano de vida – disse isto e sumiu numa ventania.

O velho médico continuou trabalhando. Um dia, recebeu um chamado urgente. Uma moça estava gravemente enferma. Ele pegou a maleta e saiu correndo. Assim que entrou no quarto da menina enxergou, parada ao pé da cama, a figura sombria e invisível da Morte, pronta para dar o bote.

O médico examinou a moça, ela era tão bonita e delicada, que ele sentiu pena. Uma pessoa tão jovem, com uma vida inteira pela frente, não podia morrer assim sem mais nem menos. Então ele pensou e tomou uma decisão. "Já estou velho, não tenho nada a perder. Pela primeira vez na vida vou ter que desafiar minha comadre".

E rápido, de surpresa, antes que a morte pudesse fazer qualquer coisa, deu um jeito de virar o corpo da menina na cama, e a cabeça ficou no lugar dos pés e os pés foram parar do lado da cabeceira. Fez isso e berrou:

-Tenho certeza! Ela vai viver!

A linda menina abriu os olhos e sorriu como se tivesse acordado de um sonho ruim.

A Morte soltou um uivo e foi embora contrariada, e no dia seguinte apareceu na casa do médico num pé de vento.

-Que história é essa? Ontem você me enganou!

-Mas ela ainda era uma criança!

-E daí? Você contrariou o destino. Agora vai pagar caro. Vou levar você no lugar dela!

O médico tentou negociar. Disse que queria viver mais um pouco.

A Morte balançou a cabeça e disse: - Quero te mostrar uma coisa:

E, num passe de mágica, transportou o médico para um lugar desconhecido e estranho. Era um salão imenso, cheio de velas acesas, de todas as qualidades, tipos e tamanhos.

-O que é isso? –quis saber o velho.

-Cada vela dessas, corresponde à vida de uma pessoa. As velas grandes, bem acesas, cheias de luz, são vidas que ainda vão durar muito. As pequenas são vidas que já estão chegando ao fim. Olhe a sua. E mostrou um toquinho de vela, com a chama trêmula, quase apagando.

-Mas então minha vida está por um fio! Quer dizer que não me resta nenhuma esperança?

A Morte fez "sim" com a cabeça. Em seguida, noutro passe de mágica transportou o médico de volta para casa.

-Tenho um último pedido, antes de morrer, gostaria de rezar o Pai Nosso.

A Morte concordou. Mas o velho médico não ficou satisfeito.

-Quero que me prometa uma coisa. Jure de pé junto que só vai me levar embora depois que eu terminar a oração.

A Morte jurou e o homem começou a rezar:

-Pai-Nosso que....

Começou, parou e gargalhou.

-Vamos lá, compadre. Termine logo com isso que eu tenho mais o que fazer.

-Coisa nenhuma! Você jurou que só me levava quando eu terminasse de rezar. Pois bem, pretendo levar anos para acabar minha reza...

Ao perceber que tinha sido enganada mais uma vez, a Morte rodopiou no vento e foi embora, mas antes fez uma ameaça:

-Deixe que eu pego você!

Dizem que aquele homem ainda durou muitos e muitos anos.

Mas, um dia, andando a cavalo por uma estrada, deu com um corpo caído. O velho médico bem que tentou, mas não havia nada a fazer.

-Que tristeza! Morrer assim sozinho no meio do caminho! - disse o médico.

Antes de enterrar o infeliz, o bom homem tirou o chapéu e rezou o Pai-Nosso.

Mal acabou de dizer amém, levantou uma grande ventania e o morto abriu os olhos e sorriu.

Era a Morte fingindo-se de morto.

-Agora você não me escapa!

Naquele exato instante, uma vela pequena, num lugar desconhecido e estranho, estremeceu e ficou sem luz.

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