Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Todas

Salvar o cavalo, salvar a esperança de futuro

Símbolo gaúcho é resgatado no Rio Grande do Sul

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Faz dias que tento elaborar os sentimentos que me tomam sobre o que acontece no Rio Grande do Sul. É difícil escrever quando a única certeza que tenho é de que não posso entender o que as pessoas estão passando em Porto Alegre, em Canoas, em diversos dos municípios do estado.

A descrição de amigos, que há alguns dias se dividem entre sair de Porto Alegre enfrentando a insegurança de estradas instáveis, e ficar com o risco do desabastecimento e do medo, é de um cenário que eu só imaginaria para uma distopia.

Não posso entender, mas tenho algumas experiências que me dão certa ideia. As enchentes de Petrópolis, cidade onde nasci e visito muito, pois é onde mora a maior parte da minha família; os desastres com barragens próximos a Belo Horizonte, onde vivo há muitos anos.

A catástrofe que assola Porto Alegre e outras cidades gaúchas é continuada, algo que se vê apenas em grandes tragédias climáticas. E o Brasil não costuma ser palco delas. Furacões, tornados, tufões e outros desastres com nomes que não temíamos, porque não nos diziam respeito. Agora dizem.

Agora dizem respeito a todos nós, e existe um luto coletivo de todos nós; mas ele não se compara ao que nossos amigos do sul do país estão vivendo. Quem não perdeu tudo ou quase tudo tem família e amigos que perderam. Todos estão em risco de alguma forma, porque estar sem água é estar em risco, estar sem luz é estar em risco. Em Viamão, o desabastecimento atinge quase toda a população. Em todos os lugares afetados, haverá risco aumentado de doenças infecciosas, haverá traumas. Eu não sei o que estão sentindo agora.

Mas conhecemos o sentimento de disrupção, aquela sensação de que a vida como conhecíamos acabou. Passamos por isso, também coletivamente, há quatro anos.

Um dos amigos acaba de chegar à cidade litorânea de Xangri-Lá, uma possível adaptação de Shangri-Lá, o país fictício da obra "Horizonte Perdido", de James Hilton. Um lugar onde as pessoas podem se preservar. Distopias.

Vejo fotos que comparam a fuga de Porto Alegre pela única saída da capital ainda viável a uma cena da série The Walking Dead. Imagens inevitáveis mostram cidades inteiras virando rio. No meio delas, vídeos que provavelmente vão correr o mundo. Um cavalo sozinho, símbolo do que é se sentir perdido, sem saber ou ter o que fazer.

Quatro dias ilhado e sozinho em cima de um telhado, e milhões de compartilhamentos depois, uma operação difícil de resgate é transmitida ao vivo pela televisão. O símbolo do estado do Rio Grande do Sul está salvo. Comentadores se sentem na obrigação de dizer que ninguém deixou de ajudar humanos para ajudar o bicho: é claro que haverá quem se pergunte se o cavalo era prioridade.

Salvar o cavalo Caramelo representa muita coisa. Se representa para mim, que não sou gaúcha e estou a quase dois mil quilômetros do Rio Grande, imagino que também signifique muito pra quem está ali, refugiado em um abrigo, na casa de um parente, de um amigo, em outra cidade, ainda no meio da estrada tentando chegar a algum lugar, qualquer lugar. Significa que muita gente se mobiliza em uma tarefa conjunta árdua por uma única vida, por todas as vidas. Significa uma possibilidade, mesmo depois de se sentir tão perdido sem saber o que fazer. Uma chance. A chance de reconstrução em que todos precisamos acreditar.

Essa reconstrução terá que observar a ciência e a realidade de que o mundo mudou, o clima mudou. Não dá mais para fingir que as tragédias que estão sendo anunciadas são questão de opinião, nem para minimizar responsabilidades políticas. O momento é de sobreviver. Mas logo será o de se reerguer e, para que isso seja duradouro, precisamos apurar as culpas e as causas que contribuíram para levar um estado inteiro para debaixo d’água. Que salvemos não apenas o Caramelo com a nossa corrente de solidariedade, mas também a esperança de futuro.

Desenho do cavalo Caramelo no barco com seus socorristas
Desenho do artista Nando Motta @desenhosdonando que retrata o resgate do cavalo Caramelo em Canoas, Rio Grande do Sul - Reprodução Instagram @desenhosdonando

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.