Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

A pandemia de covid-19 acabou?

Depoimento da Novid que tomou, feliz, a vacina bivalente

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Anteontem fui cedo ao posto de saúde para tomar a vacina bivalente contra a Covid-19, no primeiro dia para o público sem comorbidades acima de 18 anos em Belo Horizonte. Parecia não existir mais aquele sentimento de alívio e euforia nas pessoas. Elas nem postam mais suas fotos vacinadas nas redes sociais e desconfio que não acham mais tão importante correr. De minha parte, fiquei muito feliz, porque ainda sinto a urgência daqueles tempos.

Ze Gotinha posa pra foto com o presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres
O presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, posa para foto na Câmara dos Deputados ao lado do boneco Zé Gotinha - Ranier Bragon/Folhapress

O sentimento de relativa normalidade voltou para a minha vida, já não sinto a estranheza daqueles primeiros meses de pandemia. Mas mantenho a sensação de que há algo errado em vivermos desmascarados e desprotegidos enquanto um vírus perigoso segue por aqui.

Outro dia vi meu pai assistindo a um jogo de tênis ao vivo e comecei a pensar naquelas intermináveis semanas de 2020, quando o mundo parou e tudo que tinha na televisão era velho, porque quase nada acontecia em tempo real. Os dias da semana se misturavam e, mais de três anos depois, acho que ainda temos dificuldade para calcular quanto tempo se passou desde o início da pandemia.

Eu me lembro bem daqueles dias de março de 2020. Meu pai e minha mãe estavam na Alemanha. O hotel em que estavam, na cidade de Heidelberg, de repente disse que os hóspedes tinham que sair, porque eles precisavam fechar as portas. O próximo destino, Estocolmo, já nem estava mais aceitando turistas. Eles tinham que voltar voando para o Brasil. Literalmente.

Resolvi encontrar com eles no aeroporto de Guarulhos. Saí de casa, em Belo Horizonte, em uma quinta-feira de madrugada. Foram alguns dos momentos mais angustiantes da minha vida. Lembro-me bem de um abraço demorado no meu marido, na varanda de casa. E se acontecesse alguma coisa comigo? E se a gente não pudesse mais se ver, restringissem os acessos no Brasil como já começava a acontecer em alguns países da Europa? Belo Horizonte foi uma cidade em que as restrições foram reais. As ruas ficaram vazias, tudo fechou. Parecia um filme, mas era verdade.

GUARULHOS, SP, BRASIL, 23.03.2020 - Movimentação de passageiros no aeroporto Internacional de Guarulhos, na Grande São Paulo, após realizarem voo internacional. (Foto: Jardiel Carvalho/Folhapress) - Folhapress

Ainda não sabíamos, naquele momento, que uma pessoa saudável e jovem como eu (sim, perto dos 40) também estava em risco. Quem parecia adoecer gravemente e morrer eram apenas pessoas mais velhas, como meus pais. E eu não ia aceitar esse risco sem estar por perto, mesmo que, depois de uma eventual entrada no hospital, não houvesse mais nada que eu pudesse fazer.

De São Paulo, fomos para Uberlândia, onde eles moravam. Fiquei 14 dias usando N95 em casa como se qualquer um de nós pudesse estar doente. As compras passaram a ser pelos aplicativos e a gente dava banho em tudo que chegava. A coisa ainda iria piorar bastante até a gente saber que ambientes abertos e ventilados são seguros e que a contaminação por contato é mínima.

O primeiro alerta da gravidade, para mim, chegou com a suspensão da temporada de basquete da NBA, nos Estados Unidos. Mas o pior ainda estava por vir: a Globo parou de gravar novelas. Lembro de enviar para alguns amigos o print de uma notícia que dizia algo como: "É grave a crise. Pela primeira vez em mais de 50 anos, o Brasil vai ficar sem uma de suas principais ‘instituições’: a novela das nove".

Para diminuir o número de vetores do vírus, as ruas deviam ficar apenas para quem realmente precisava sair: profissionais de saúde, jornalistas, caminhoneiros, atendentes de farmácias e supermercados, pessoas que trabalham em hospitais.

O sinal de que a situação era muito pior do que as pessoas poderiam imaginar veio, para mim, em abril. Eu faço pesquisa sobre saúde há algum tempo e estava começando um curso sobre Covid-19. O primeiro professor, um médico americano, disse três coisas: (i) eu subestimei esse vírus, até me fantasiei de corona no carnaval; mas está bem longe de ser só uma gripe (ii) vai demorar; e (iii) não será a última pandemia que a nossa geração vai ver.

Comecei a estudar artigos sobre outras epidemias respiratórias por vírus dos anos 2000. Ler o que se esperou de SARS e MERS há mais de uma década – e que acabou não se concretizando – parecia um pesadelo. Era quase como ler que o que estávamos – e ainda estamos – vivendo era questão de tempo e que já deveríamos saber que uma hora nosso estilo de vida cobraria seu preço.

Duas universidades americanas projetaram o tempo de duração da pandemia para 5 ou 7 anos, lembro-me de ter ouvido falar algum tempo depois. Já não me surpreendia mais.

Faz três anos que estamos em uma pandemia, embora a ampla flexibilização de medidas restritivas nos faça acreditar que já passou. Na verdade, um dia após a publicação deste texto, tomamos conhecimento de que a OMS anunciou o fim da emergência internacional causada pela covid-19.

Jamil Chade explica que, "pelas regras da agência, não existe uma declaração oficial do final da pandemia. Assim como a Aids, portanto, a covid-19 continuará a ter o status de pandemia".

Hoje, a cada três minutos, uma pessoa ainda morre pela covid-19. Há pouco mais de um mês, o Brasil passou de 700 mil mortes causadas pelo vírus. Todos os dias, aqui e no mundo, centenas de pessoas continuam morrendo.

Matéria publicada recentemente no New York Times e repercutida na última terça-feira aqui na Folha de São Paulo demonstra que, nos Estados Unidos, houve uma melhora significativa na situação em relação aos anos anteriores, mas que cerca de 100 mil americanos ainda estão sendo infectados com Covid toda semana e mais de 150 vêm morrendo da doença a cada dia.

Sei que pode parecer pouco. Mas são mortes potencialmente evitáveis, de pessoas como eu e você. Se forem pessoas próximas de nós, 150 é o mundo inteiro.

Para preservar a minha saúde mental, parei de ler tantos artigos sobre Covid-19, mas o que leio não é nada bom. A doença atinge órgãos vitais, seguimos sem entender bem por que as pessoas reagem de formas tão diferentes, não devemos minimizar os riscos de reinfecções. Ainda não sabemos todos os possíveis efeitos de longo prazo e a chamada Covid longa pode durar mais de um ano para algumas pessoas, que seguem sentindo extremo cansaço, dificuldade para realizar tarefas rotineiras e problemas de memória. Quadros leves ou moderados da doença também não garantem que não haverá sequelas.

Descobri recentemente que pessoas como eu, minha filha, que ainda não conhece um mundo não pandêmico, e meu pai, dos poucos que conhecemos que ainda não testaram positivo para Covid nem tiveram sintomas da doença, somos chamados de Novids. E, mesmo aos olhares de insatisfação nos elevadores, continuarei adotado o máximo de cuidados possíveis e evitando situações de maior risco de contaminação.

Sabemos que máscaras funcionam, que ventilar ambientes é importante. E que a principal medida para nos proteger é a vacina. Quanto mais gente estiver imunizada, quanto menos o vírus circular, mais perto estaremos de poder dizer, enfim, que a pandemia de Covid-19 ficou para trás. Mas esse momento, infelizmente, ainda não chegou. A ameaça não acabou.

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