Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Quando o luto encontra a compaixão: Favela Compassiva e Patfest

No Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, falamos sobre o tema deste ano

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Nos últimos 19 anos, o segundo sábado de outubro é marcado pela celebração do Dia Mundial dos Cuidados Paliativos e Hospices (World Hospice and Palliative Care Day).

A médica Maria Perez Soares D’Alessandro, coordenadora do Projeto de Cuidados Paliativos do Proadi-SUS, diz que a data compõe uma campanha que celebra e apoiar o desenvolvimento dos Cuidados Paliativos (CP) no mundo e, a cada ano, tem um tema que joga luz a algum aspecto ou demanda relevante da área.

O tema escolhido para 2023 é "Comunidades Compassivas: Juntos pelos Cuidados Paliativos".

Maria Perez explica que "as Comunidades Compassivas são iniciativas comunitárias associadas a cuidados paliativos, formadas por pessoas de uma mesma comunidade que se organizam para auxiliar pessoas que vivem com uma doença ameaçadora da vida e seus familiares em situação de luto ou perda. A proposta é que as pessoas da comunidade assumam responsabilidades sobre a saúde das pessoas vulneráveis que participam dela".

Como sempre lembramos aqui no Morte sem Tabu, os cuidados paliativos não se resumem aos cuidados de fim de vida para pessoas que estão morrendo – embora esses cuidados também sejam parte importante dos CP. "Ainda existe uma equivocada ideia de que cuidados paliativos são quando não há mais nada a fazer por pessoas que estão morrendo. Vejo sempre essa afirmação em comentários nas redes sociais, vindos até mesmo de profissionais de saúde, e sendo dita e escrita por comunicadores", afirma Maria Perez.

Mulher branca de blusa branca, colar verde fala ao microfone
Médica Maria Perez fala no 3o Encontro do Projeto de Cuidados Paliativos do Proadi-SUS - Rede Social/LindedIn

Por isso, "o envolvimento da sociedade na temática e no cuidado é um grande diferencial para o ganho de qualidade. Nos CP trabalhamos com a perspectiva de aliviar o sofrimento multidimensional (não apenas físico, mas também emocional, espiritual e social), de provocar o olhar centrado na pessoa e não na doença. Entendendo as demandas da pessoa, percebemos que somente os serviços de saúde não são suficientes, que é preciso uma rede de apoio especialmente para pacientes com maior dependência (menor funcionalidade). As comunidades compassivas trazem essa proposta de organizar/fomentar essa rede de apoio dentro da comunidade".

Maria afirma que a organização de comunidades compassivas no Brasil vêm aumentando nos últimos anos. Nos dias 13 e 14 de outubro de 2023 ocorre o 1º encontro de Comunidades Compassivas, organizado pela Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) no Rio de Janeiro.

Favela Compassiva

O mais conhecido projeto brasileiro é o "Favela Compassiva: Rocinha e Vidigal", no Rio de Janeiro, de iniciativa do Professor Alexandre Silva, doutor em Cuidados Paliativos e coordenador da Pós-Graduação em Cuidados Paliativos da Universidade Federal de São João del Rei, em Minas Gerais.

Três mulheres brancas e um homem branco estão abraçados e vestem camisetas com escrito "Comunidade Coompassiva"
Alguns membros da liderança da Favela Compassiva Rocinha e Vidigal: Maria Gefé da Rosa Mesquita, Lívia Pereira Coelho, Liana Amorim Corrêa Trotte e Alexandre Silva - Divulgação Favela Compassiva

Sua força motora é a compaixão: "mais do que empatia pela pessoa que sofre, é uma determinação prática e contínua de fazer todo o possível e necessário para aliviar o sofrimento dela".

Desde 2018, moradores da Rocinha e do Vidigal recebem capacitação de profissionais de saúde de diversas áreas e, com eles, formam uma rede de apoio voluntária apta a acolher pacientes com doenças ameaçadoras da vida e em situação de vulnerabilidade e vulneração social. Os membros da comunidade são capacitados para ajudar a cuidar, por exemplo, do banho, da higiene oral, do controle de uso de medicamentos.

Grupo de diversas mulheres e alguns homens vestindo camisa do Projeto Favela Compassiva: Rocinha e Vidigal. Alguns mostram seus certificados de capacitação
Capacitação de agentes compassivos locais no Projeto Favela Compassiva: Rocinha e Vidigal - Arquivo pessoal

No último dia 4 de outubro, aconteceu o 3º Encontro do Projeto de Cuidados Paliativos do Proadi-SUS. A importância das comunidades compassivas foi destaque do evento, com participação do Professor Alexandre Silva.

Alexandre contou histórias de pessoas que não tinham qualquer rede de apoio em casa, a ponto de serem encontradas morrendo não em decorrência direta de suas doenças, mas por outras razões. Por exemplo, um homem que estava sendo comido por ratos ou uma mulher vítima de sucessivas violências sexuais.

Três crianças encontradas em situação de completo abandono e possível fim de vida agora vão para a escola e são bem cuidadas.

Moradores das favelas que fazem parte do projeto Favela Compassiva são essenciais para localizar as pessoas elegíveis para cuidados paliativos. A elegibilidade é confirmada por médicos e o primeiro passo é vincular os pacientes à rede de saúde.

Alexandre explica que é essencial integrar a rede de saúde: "a gente entra, faz o plano de cuidado, compartilha com as referências da rede de atenção à saúde. A atenção primária precisa ser reconhecida como a grande ordenadora e coordenadora do cuidado. Nós não podemos ocupar o papel do Estado. O Estado não pode olhar para a gente e pensar: ‘ali já tem comunidade compassiva, não precisa do poder público’". O primeiro artigo científico sobre a implementação de comunidades compassivas nos territórios do Vidigal e da Rocinha foi publicado recentemente.

As comunidades compassivas contam com contribuições de parceiros e apoiadores, para que pacientes recebam medicamentos, material de higiene, fraldas e alimentos. Para existir, o projeto Favela Compassiva depende não apenas do tempo doado pelos membros das comunidades e dos profissionais de saúde, como das doações daqueles que acreditam na rede solidária como ferramenta de transformação social. Para que se proporcione uma vida digna até que sobrevenha uma morte também digna.

No ano passado, o Favela Compassiva ganhou um importante e especial movimento apoiador.

Em 2022, Patricia Perissinotto Kisser, produtora e empresária com formação em Medicina, e esposa do músico e guitarrista da banda de heavy metal Sepultura, Andreas Kisser, morreu em decorrência de um câncer. Patrícia havia expressado sua vontade de fazer uma festa para celebrar o fim de um ciclo de tratamento. Mas a doença progrediu rapidamente e não houve tempo.

Andreas conta que, quando ela morreu, não teve dúvidas de que deveria honrar a sua vontade e realizar a festa logo que possível: "Patricia era assim: gostava de juntar pessoas, ela enxergava o bem em todo mundo, falava com o mais famoso e o mais desconhecido da mesma forma, promovia a paz. Patricia era a paz".

Andreas Kisser e Patricia Kisser posam abraçados
Andreas Kisser e Patricia Kisser - Reprodução Instagram

Perguntei sobre a ideia da festa na elaboração do luto pelas outras pessoas queridas da Patricia: "Eu conversei primeiro com nossos filhos, Giulia (28), Yohan (26) e Enzo (18). Depois conversei com meus sogros, meus cunhados. Todos apoiaram".

Disse a ele que acho muito bonito quando os nossos amores nos conhecem tão bem que têm certeza sobre o que é o certo a fazer.

Andreas sempre conta que a esposa falava da morte com muita naturalidade e, muito antes de ficar doente, brincava sobre os detalhes de como queria estar no caixão: "meu pijaminha, meu travesseiro, as meias para não passar frio". Essa postura dela tornou as coisas um pouco menos difíceis para a família, porque suas vontades eram muito claras.

"Conhecer os desejos da pessoa conforta muito; a gente coloca energia na realização dessas vontades e isso ajuda a lidar com o próprio luto e a tirar os monstros. Dá paz no lugar de paralisar", Andreas diz.

Para ele, isso acontece quando a gente fala sobre a morte como o fato inevitável que ela é, que acontece mais cedo ou mais tarde, por uma doença ou não.

Ele complementa: "Eu lembro que no seu livro você conta a história de uma pessoa que, ao descobrir um câncer muito agressivo, diz que foi como morrer e ter outra chance de viver mais um pouco. E ele decidiu viver da melhor forma possível até morrer de novo",

Era o Rodrigo. Ele havia passado os últimos meses escrevendo um livro de poemas sobre a vida, a doença, a morte, a relação com as pessoas, os remédios. Eu estava organizando um evento sobre saúde na Advocacia-Geral da União e perguntei se podíamos levar alguns exemplares que sua prima Bárbara mandou fazer artesanalmente. Na última mensagem de áudio que o Rodrigo me mandou, sete dias antes de morrer, ele dizia que tava "bem no finzinho da vida" e que, mais do que apoiar a ideia de distribuir os livros, ele agradecia profundamente e nos dava sua benção.

A força de quanto honrar o legado de alguém pode acalmar corações enlutados é impressionante.

Diversos músicos estão no palco cantando a música Evidências
Patfest reúne Andreas Kisser, Chitãozinho e Xororó, Yohan Kisser e outros músicos no palco da Audio, em São Paulo - SPTV - TV Globo/YouTube

Andreas não apenas cumpriu a vontade da esposa, como a elevou a uma bandeira de transformação social. No ano passado, a festa que Patricia idealizou foi realizada pela primeira vez. O "Patfest" aconteceu no dia 28 de setembro de 2022 e teve apresentações de mais de 50 artistas, dentre os seus preferidos. O evento teve direito até ao hino "Evidências" com coro emocionado para Chitãozinho e Xororó, Andreas e o filho Yohan no palco da Audio, em São Paulo.

"Amigos e familiares reunidos em memória de alguém muito, muito querido que já se foi. E o nome disso não é funeral, é festival". Assim começava a reportagem do SPTV sobre o primeiro Patfest.

O valor dos ingressos foi revertido para a Comunidade Compassiva. "Não tinha como ser diferente, essa festa precisava interferir na sociedade, não apenas para a gente criar uma forma de falar mais sobre o assunto, mas de também contribuir, de forma mais direta, para ajudar pessoas que precisam imediatamente".

Andreas conta que, hoje, consegue perceber melhor como a comunicação dos médicos impacta as decisões dos pacientes. Mas entende que a culpa não é só deles: "a nossa sociedade não fala sobre o assunto, os médicos não aprendem na faculdade. Para mudar, a gente precisa refletir desde o nascimento".

Ampliar as vozes que falam sobre o morrer é o objetivo do movimento Mãetricia, criado pelo líder do Sepultura em homenagem à Patricia. Se a gente falar mais sobre isso, pode e vai viver melhor, não apenas no fim da vida – essa é uma ideia que o Mãetricia e o Morte sem Tabu compartilham.

No próximo dia 25 de outubro, acontece a segunda edição do Patfest, novamente com a renda revertida para o projeto Favela Compassiva. A fundadora do nosso blog Morte sem Tabu, Camila Appel, estará presente.

Para maiores informações:

https://www.comunidadecompassiva.com.br/

http://movimentomaetricia.org/

https://www.instagram.com/patfestfestival/

https://www.proadi-sus.org.br/projeto/cuidados-paliativos-cp

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