Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Todas Mente Boate Kiss

Ator Thelmo Fernandes fala sobre morte a partir da série 'Fim'

O intérprete de Álvaro foi também o marcante Pedro em série sobre a Boate Kiss

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Ainda embalada pelas palavras de que "é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte", levei um susto quando li que a série "Fim" da Globoplay era definida pela própria Globo como uma tragicomédia.

Eu assisti aos 10 episódios da obra inspirada no livro de mesmo nome da genial Fernanda Torres prendendo a respiração. E nem era pelo spoiler de que todo mundo morre – algo que também não é totalmente verdade –, mas porque nenhum dos personagens parecia tender para a felicidade.

Nas quatro décadas que atravessam a série – que tem como um de seus grandes méritos o cuidado na passagem de tempo, com atuação e caracterização impecáveis – eu antecipava o luto pelas relações rompidas. E, como uma adolescente que busca um bom papel com quem me identificar, não encontrava ninguém, porque são todos dolorosa e demasiadamente humanos.

Em um universo de pessoas muito reais, é difícil identificar quais sentimentos e problemas nos parecem mais ou menos aceitáveis. Para tornar a tarefa ainda mais complexa, a história mata logo quem ostenta um ar maior de moralidade ou correção. E deixa apenas para o fim alguma redenção de uns, contra a crescente repulsa por outros.

A primeira quase-morte de "Fim" é a do personagem Álvaro, ainda na juventude. É difícil acompanhar seu envelhecimento e lembrar que é o mesmo Thelmo Fernandes que impactou os espectadores da minissérie da Netflix "Todo dia a mesma noite: o incêndio da Boate Kiss".

Várias pessoas estão em vigília, incluindo Débora Lamm como Suzana e Thelmo Fernandes como Pedro, que seguram velas acesas e usam camisetas com foto da filha morta, em cena da série "Todo dia a mesma noite"
Débora Lamm e Thelmo Fernandes em cena como Silvana e Pedro Leal na série "Todo dia a mesma noite" - Divulgação


Na série sobre uma das maiores tragédias já ocorridas no Brasil, ele é Pedro, o pai de Mari, e reconhece seu corpo pelo tênis que havia acabado de lhe dar de presente de aniversário. Pedro é um homem altivo, seguro de suas próprias razões. Em "Fim", Álvaro é alguém difícil de descrever: ele tem impotência sexual, mas isso não se transformou no grande problema da sua vida. É um bom amigo, um bom pai, um cara legal, que aceitou a sua natureza passiva, especialmente no campo das relações amorosas, mesmo rodeado de amigos que estavam sempre em busca de uma aventura romântica.

Mesmo assim, é ele quem toma a corajosa decisão de abandonar a mulher Irene (Débora Falabella). Não porque descobre sua traição, mas porque ela não se importa com ele, nem com ninguém. E é assim que Álvaro vai embora apenas com o cachorro da família, que Irene estava plenamente disposta a deixar morrer minutos antes.

Uma mulher e um homem idosos com cabelos grisalhos choram abraçados em um velório
Débora Falabella e Thelmo Fernandes como Irene e Álvaro na série "Fim" - Bastidores da série - arquivo pessoal

Com exceção de Ruth (Marjorie Estiano), "Fim" mostra personagens que se mantêm fiéis a sua natureza, da juventude até a morte. Talvez a realidade não seja assim tão estática, mas ela gosta de demonstrar que ninguém deve esperar mudanças drásticas do outro se disso depender a durabilidade de um relacionamento.

A natureza de Álvaro é o que classificamos como indesejada, talvez porque pouco apaixonada, mas o que o personagem faz apesar dela é invejável. Conforme envelhece, ele transmite a paz de quem aceita o próprio destino naquilo que não pode mudar e nem por isso deixa de se sentir uma pessoa realizada, sem o assombro do sentimento de incompletude. Nisso, o personagem destoa da maior parte dos seus amigos – ao menos daqueles que envelhecem também.

É por essa característica, que senti tão próxima, além da percepção de que Thelmo tem realizado brilhantemente diversos trabalhos com a morte no centro das histórias, que trago a entrevista realizada com o ator na última semana:

Morte sem Tabu: A série "Fim" é um sucesso. Como foi participar dela?

Thelmo Fernandes: Começamos a gravar em março de 2020, pouco antes de a pandemia começar e tudo fechar. Tínhamos feito uma preparação maravilhosa de dois meses, em que tínhamos trabalhado muito a credibilidade dos relacionamentos amorosos e das amizades, e, de repente, tudo parou. Então, houve essa fase horrorosa da pandemia, com tantas mortes, e a gente envolvido em um projeto também de morte. Mas, quando a gente retomou, em 2022, parecia que nunca tinha se afastado. Pelo contrário, a sensação é de que tínhamos aprofundado os laços. Acho que esse período serviu pra nos amadurecer e valorizar os encontros, o que tornou a gravação da série, que é uma série sobre encontros, muito especial.

Morte sem Tabu: Como é a sua relação com o Álvaro?

Thelmo Fernandes: Sempre foi a melhor possível, sou completamente apaixonado por ele. Desde que fui convidado para fazer a série, achei o personagem fascinante. Eu comprei o livro da Fernanda e devorei o capítulo do Álvaro, que tem várias nuances, muitas inseguranças, muitas dúvidas e conflitos. E esse homem vai amadurecendo e aprendendo a conviver com as adversidades da vida, especialmente com essa dificuldade de se relacionar com as mulheres, em todos os sentidos. Ele não é um conformista, mas cria uma sabedoria própria, sem se revoltar. Acho que o único momento em que ele não se revolta, mas passa a se importar menos, é já bem no fim da vida, em que a solidão invade a sua velhice. O Álvaro é extremamente humano, reflete características de muitos de nós. Esse é pra mim o grande mérito da série, todos os personagens são muito humanos e passam por situações que espelham o que a gente conhece e, muitas vezes, vive também.

Morte sem Tabu: Como é fazer uma série em que você sabe desde o início que o seu personagem vai morrer?

Thelmo Fernandes: É engraçado, porque a questão do morrer não foi o enfoque principal na nossa preparação. A morte era a consequência inevitável, não a essência. O nosso foco foram as relações, construir essas relações de forma que parecessem verdadeiramente concretas, que esse grupo de amigos existisse; além da passagem de tempo, que era um desafio muito grande, inclusive fisicamente. Envelhecer muda nosso andar, as reações, os reflexos, mas isso exige, tecnicamente, um trabalho que acontece de dentro pra fora, precisa de uma mudança de postura interna. Mas claro que a morte sempre tangenciou o enredo, até porque nós começamos a gravar pela terceira década das vidas retratadas na série, pelo velório do Ciro (Fábio Assunção). Mas mesmo assim, o que se destacava não era aquele evento, e sim o que tinha acontecido até ali.

Morte sem Tabu: Como é o pensar em morrer pra você?

Thelmo Fernandes: Eu não penso muito em quando eu vou morrer, mas eu me preocupo cada vez mais com os anos passando, em como aproveitar cada dia da minha vida. Eu tenho 57 anos, então sou atento a minha saúde, eu me cuido, presto atenção nas mudanças, no que acontece no meu corpo, faço exames periódicos. Não sou uma pessoa assombrada pelo "tema" morte, mas me preocupo com meu filho de 16 anos, com a minha família que depende de mim.

Morte sem Tabu: A série tem ecos na sua vida pessoal?

Thelmo Fernandes: Eu acho que o grande diferencial de "Fim" é a humanidade dos personagens, o quanto me soam reais, podemos nos ver em muitos aspectos, muitas situações. As inseguranças do Álvaro refletem um pouco da timidez da minha juventude. Em outros personagens, há as dificuldades de entendimento entre casais que já se refletiram em muitas relações minhas. E, claro, a questão da finitude, faz a gente refletir especialmente sobre as escolhas que nós fazemos.

Morte sem Tabu: Além de "Fim", você fez, recentemente, "Todo dia a mesma noite"; acaba de estrear em "Betinho: no fio da navalha" (Globoplay); e esteve em cartaz na peça de Nelson Rodrigues "A Falecida", que volta no ano que vem. Como foi fazer tantos trabalhos recentes que têm a morte, em alguma medida, como fio condutor?

Thelmo Fernandes: Interessante, eu ainda não tinha parado pra pensar nisso. Realmente, a morte é central em todos eles, mas cada um com uma abordagem diferente, com processos de realização, interpretações diferentes.

Em "Todo dia a mesma noite", o agente causador do sofrimento é o incêndio e a morte da minha filha na série, então a grande questão do Pedro era lidar com esse luto de modo a buscar justiça. Nessa série, um dos principais aspectos que a gente trabalhou foi o afeto e a individualidade do luto: cada um tem o seu tempo e ninguém é capaz de julgar quanto deve durar o luto de alguém. Foi uma reflexão profunda como ator e como pessoa também. O luto do Pedro era, ao mesmo tempo, interminável e a razão para seguir adiante, naquela busca por justiça.

Em "Fim", além da finitude da vida, estamos falando do fim das relações, da deterioração de vínculos. A série sobre o Betinho é muito especial, depois desse momento que passamos com a pandemia, a completa incapacidade do poder público de lidar com ela, a falta de empatia, falta de tudo. Trazer de volta o Betinho, um homem com uma doença que, na época, representava uma sentença de morte (Aids), e ainda assim fez tudo que fez pelo país, soa para mim quase como um dever cívico. E no espetáculo "A Falecida", a morte é vista como uma forma de redenção e felicidade.

Acho que todos esses trabalhos contribuíram pra que eu pensasse ainda mais em aproveitar a vida com intensidade, em viver cada dia. Eu tô assistindo a uma série incrível agora, chamada "A sete palmos", que traz a reflexão de que ninguém sabe quando vai morrer e, por isso, temos que fazer com que cada dia importe. Acho que é isso.

Cena de 'Fim', série baseada no livro de Fernanda Torres
Cena de 'Fim', série baseada no livro de Fernanda Torres - Divulgação

A série "Fim" tem direção de Andrucha Waddington e Daniela Thomas, roteiro de Maria Camargo e Fernando Rebello, e além dos atores e atrizes citados, tem no elenco principal Bruno Mazzeo, David Junior, Emilio Dantas, Heloísa Jorge e Laila Garin.

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