Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Todas Mente

O que descobrimos quando tiramos da frente as palavras?

John, de Julia de Souza, é, sobretudo, um livro sobre a perda da linguagem

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Tatiana Eskenazi

Costumo usar lápis para grifar os livros. Mas alguns, quando me dou conta, já estão tomados por caneta marca texto. Li John, de Julia de Souza (ed. Âyiné), há alguns meses. Fiquei com ele por perto, conversei sobre ele com algumas pessoas, reli alguns trechos. Passado esse tempo, percebo agora suas páginas marcadas por um rosa neon (medo do esquecimento?) e sigo sem saber muito bem como escrever sobre ele, um livro que fala justamente sobre a perda das palavras.

Bem, John é um livro sobre a perda de um pai, a doença e o luto. É também, em tempos de tantos relatos pessoais sobre o tema, um questionamento sincero sobre lançar ao mundo mais um desses relatos. "Afinal, a quem interessa o luto do outro? (…) Por que esse luto, e não outro, é digno de nota?"

Mão segura livro, com página grifada de marca-texto em rosa, em frente a plantas
Página de livro "John", de Julia de Souza - Tatiana Eskenazi/Tatiana Eskenazi

Sim, John é mais um livro sobre o luto e, como em muitos outros relatos sobre o assunto, nos identificamos com a experiência pessoal desta filha e lembramos que somos todos mais semelhantes e comuns do que imaginamos - e que nossas dores não são, digamos assim, exclusividade nossa. Porém, por mais repetitivos que possam parecer, mesmo que façam parte de um grande coro coletivo, um relato de luto jamais será igual ao outro. Há sempre algo inédito no sofrimento humano, e um espaço de identificação para o leitor jamais será em vão.

Me identifiquei profundamente com a filha que sonha que o pai está de volta: "(…) ele tinha morrido, mas não de fato. Seu corpo reanimara logo antes de ser enterrado? (…) o que faríamos quando ele de fato morresse, ou morresse novamente?". Quantas e quantas vezes tive esse mesmo sonho, que persiste há mais de trinta anos. É um sonho comum e recorrente, existem muitos relatos deste tipo, o que me faz pensar em uma frase do Mia Couto que diz que "O morto amado nunca para de morrer", e no trecho do conto "Emma Zunz", de Jorge Luiz Borges: "A morte de seu pai era a única coisa que tinha sucedido no mundo e que continuaria sucedendo para sempre."

Encontrei também, na menina que sofre suas primeiras crises de pânico e depressão que a acompanhariam pelas décadas seguintes - e que assim como a demência fez com o pai também roubariam suas palavras - a mim mesma: "Meus olhos não só viam, mas eram invadidos por um mundo profundamente abstrato, impronunciável."

Não, John não é apenas um livro sobre o luto. John é também, e sobretudo, um livro sobre a perda da linguagem, sobre o desligamento lento e gradativo causado por uma doença degenerativa ou psiquiátrica. É sobre não ter mais as palavras como elo com o mundo e com a nossas memórias: "O contato com o mundo se transforma radicalmente à medida que as linguagens oral e escrita minguam." Desde que li John, não paro de pensar sobre esse lugar de desconexão, de silêncio.

O que somos sem as nossas palavras? O que resta de nós quando elas nos faltam para nomear memórias e sentimentos? Será que seguimos lembrando e sentindo? São questionamentos que a autora, uma filha diante do desaparecimento do pai como o conheceu até então, de um lugar de profunda vulnerabilidade, se faz de forma sincera e corajosa: "Restariam lampejos, gostos, tridimensionalidades ou cheiros, ainda que sem conteúdo, sem palavras ou significados correspondentes? Restariam essas cicatrizes do humano, ou o que meu pai vivia era o presente puro, a sensorialidade pura (…) ?"

Quarta capa do livro "John", de Julia de Souza, em que se lê: "Lidei por muito tempo com a vontade temerosa de acessar a forma da consciência demente do meu pai. Restariam lampejos, gostos, tridimensionalidade ou cheiros, ainda que sem 'conteúdo', sem palavras ou significados correspondentes? Resetariam essas cicatrizes do humano, ou o que meu pai vivia era o presente puro, a sensorialidade pura - a pele que recebe o vento, o cheiro da gasolina que entra pelas narinas sem provocar nenhum eco na consciência e logo se dissipa para não deixar rastro?"
Quarta capa do livro "John", de Julia de Souza - Tatiana Eskenazi/Tatiana Eskenazi

No livro "Afetos colaterais" (ed. Planeta), a professora e escritora Bettina Bopp escreve crônicas a partir das falas sem sentido provenientes de confusões de linguagem e alucinações que uma doença degenerativa causou em sua mãe. Assim como Julia, Bettina também viu a personalidade e o brilhantismo de sua mãe serem sequestrados pela demência, e também se perguntou a que pode servir esse lugar de ausência de lucidez, de desconstrução da linguagem: "Não era a mãe que eu conheci, mas também não era a mãe que me afastou. Era uma terceira mãe. Mãe-poeta."

A demência é uma longa despedida, sofrida em todas as suas nuances, na qual ambos os envolvidos despedem-se da mesma pessoa. Enquanto quem está ao lado se despede da pessoa amada tal qual a conhecera, a própria pessoa despede-se de si mesma e do mundo ao seu redor, desconectando-se lentamente desta vida, na medida em que o tecido da linguagem e da memória se esgarça. Porém, quase tudo o que acontece durante o processo da demência é um mistério: "Pouco a pouco, John foi perdendo o interesse pelos noticiários…Mas sua relação com a música não apenas se mantinha, como se tornava mais intensa…Às vezes, fechava os olhos e balançava a cabeça, parecendo esquecer as coisas do mundo e se lançar numa fruição plena de um presente tão vibrante quanto impalpável."

Depois de conviver algum tempo com John e com as perguntas que Julia me trouxe, entre elas a do filósofo Paul Ricoeur que diz "O esquecimento é mesmo uma disfunção?", outras me vêm em mente e persistem: A que serve o esquecimento, afinal? O que descobrimos quando tiramos da frente as palavras? O que brota, enfim, desse lugar de "presença impalpável" e silêncio?

Capa de livro azul com o nome "Julia de Souza" no canto superior esquerdo e, abaixo dele, "John"
Capa do livro "John", de Julia de Souza - Tatiana Eskenazi/Tatiana Eskenazi

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