Normalitas

Espanholices, maravilhas do ordinário, brotos de brócolis

Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Nunca haverá alguém como Lola, La Faraona

Lola Flores, ícone do flamenco espanhol, estaria completando 100 anos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sobre ela, dizem que o New York Times publicou uma vez: "não canta e nem dança, mas não percam!".

Mas sobre ela dizem muitas coisas.

Lola Flores, cantora e bailaora de flamenco y coplas, espécie furacânica à la Elis-meets-Carmen-Miranda, ícone-diva-lenda máxima da cultura espanhola, completaria neste sábado (21) um século de vida.

Isso, se uma longa batalha de duas décadas com um câncer de mama não a tivesse finalmente levado pra bailar nas nuvens, em 1995, aos 72 anos.

Natural de Jerez, terra do vinho homônimo em Cádiz, Andaluzia, Lola começou cedo -- como muitos do metiê, por algo entre a necessidade e liberdade-de-ser, contrários pendulares tão recorrentes na cultura gitana.

Aos 10 anos, já cantava pelos bares de sua cidade natal, e com 15 fazia turnês locais com um teatro de vaudeville. Antes dos 20, já estava em Madri, a grande Meca do Artista.

Aliás, foi de mala, cuia e família, convencendo o pai a vender o bar que tinha em Jerez. Tal era a cabezota da Lola, que de niña já descartou o longilíneo nome de batismo, María Dolores Flores Ruiz.

Foto antiga em preto e branco mostra mulher morena com o cabelo em um coque e uma flor e um vestido de flamenca
Lola Flores em 1955 - Arquivo

As unhas longas, os olhos marcados de kajal e, sem dúvida, a volúpia com que se atirava aos palcos e aventuras (profissionais e extracurriculares) lhe renderam o apelido eterno: La Faraona, Aquela Que Consegue Qualquer Coisa E Está Acima de Tutti.

Também a chamavam de "Lola de España", tão icônica quanto El Toro de Osborne, a siesta ou a paella valenciana.

"Foi, creio, uma das figuras mais importantes da Espanha do século 20", diz Alberto Romero Ferrer, professor da Universidade de Cádiz e autor de um livro sobre a artista.

"Primeiro, pela profundidade de sua arte; e, segundo, por seu alcance popular. O que ela fez chegou ao mundo inteiro, não foi algo que se moveu apenas na elite cultural ou nos setores mais baixos; seu público compôs um espectro social que era praticamente 100% dos espanhóis e espanholas".

***
Ao longo de sua intensa vida, teve 34847018 romances tórridos, pra alegria da imprensa. Deu altos rolês com Ava Gardner e Frank Sinatra quando por aqui estavam (ainda que Sinatra odiasse a Espanha, mas isso fica pra outra coluna). Em suas casas em Madri e Marbella, recebeu mil gentes famosas, de Sean Connery a Audrey Hepburn. Era amiga do high e low, falava grosso do jeito andalú, comendo o finá das palabra, e não tinha nenhuma papa na língua.

Ao emissário de um ministro español que queria conhecê-la em uma festa, dizem, teria retrucado: "diga ao senhor ministro que eu vou seguir sendo Lola Flores até a morte, e que ele, seguramente, já não será ministro o ano que vem. Se quiser um saludo meu, que venha ele aqui".

Sobre Churchill, com quem topou em Veneza, dizem que espantou-se de que não falava espanhol. Depois desse encontro, sempre comentaria: se o primeiro-ministro britânico, sendo tão esperto, não falava a sua língua, nem ela falaria a dele. Se non è vero, è ben trovato, diriam os italianiii...

Nem quando escandalosamente denunciada por sonegação fiscal, em 1987, perdeu a fama e o amor do público. Era Lola, a que tudo podia, a que fazia showzinhos particulares para Franco em La Granja, mas que, depois da morte do ditador, clamava que não era de nada nem ninguém; pertencia à España.

Inesquecível, por presença, talento e arretadice mitológica.

Segundo outra de suas histórias famosas, um jovem Almodóvar levou um não dela quando buscava a protagonista para seu segundo filme, Laberinto de pasiones -- a princesa Toraya, no fim interpretada pela hispano-alemã Helga Liné.

O cineasta e a faraona se aproximariam anos mais tarde, mas nunca chegariam a concretar uma colaboração nas telas. Pena, penita, pena, já que estavam feitos um pro outro. Aliás, Almodóvar (dizem, dizem) teria afirmado certa vez que tinha admiração por dois personagens nessa vidiña: Andy Warhol --- e Lola.

Lola fez discos, filmes, filhos. Os três, artistas, inclusive Lolita, cantora e atriz, e Antonio, que faleceria poucos dias depois da mãe, dizem, dizem, de tristeza.

A terceira geração das Flores também segue no mundo do espetáculo -- como a neta Alba, filha única de Antonio, a Nairobi da série espanhola La Casa de Papel.

Quanto mais velha, mais bela foi Lola. Coisas de divas españolas, que aqui exudam rugas e tesão de viver.

Nos passos reverenciosos de artistas xxxovens espanhóis como Rosalía, Nathy Peluso e C. Tangana, mantém-se viva la llama de la niña Faraona. "Não houve nunca alguém como Lola", resume Rosalía na série homônima da Movistar. "Nunca haverá. Era única".

****

No velório de Lola, em Madri, seu rosto amortalhado em renda branca, uma multidão de mais de 100 mil pessoas entoou "La Zarzamora", uma de suas canções mais conhecidas, junto com "El Lerele".

Sobre a artista, o aclamado ator -- e amigo -- Paco Rabal escreveria um breve obituário no jornal espanhol El País: "quando Picasso morreu, senti como se algo que pertencia a todos nós tivesse desaparecido. A mesma coisa aconteceu comigo hoje (...). São símbolos, mitos desta Espanha tão individual, da qual nascem de vez em quando gênios".

Recentemente, o ombudsman do mesmo veículo desmentiu essa história do New York Times, replicada à exaustão pela imprensa ao longo de décadas. Quem teria inventado um boato tão bem-sucedido? Não se sabe. Mas, pra quem é mito, tudo cola. Ainda que Lola, sim, bailasse e cantasse, e era imperdível.

(Siga meu perfil no Instagram)

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.