Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

A estética das danças negras é um patrimônio policêntrico

Aspectos da dança africana que estruturam as particularidades de um corpo afro-brasileiro na dança

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Acredito que a dança é um meio acessível de conhecermos nosso corpo e nossa herança ancestral, nos permitindo ser protagonistas da nossa existência no mundo. Quando a dança é usada como ferramenta de articulações para a política de gênero, corpo e identidade cultural, podemos sentir a importância do que está além da qualidade do que pode se movimentar em músculos e membros, mas sim, da sua consciência cultural e crítica sobre seus deveres e saberes.

As danças africanas e seu senso estético moldaram a etnocoreografia brasileira, e essas assinaturas corporais estão presentes nas danças afro-brasileiras como, por exemplo, passinho (funk brasileiro), samba, jongo, danças dos Orixás (candomblé), maracatu, tambor de crioula, maxixe (que já foi considerado o tango brasileiro) e outras danças, que foram criadas com a chegada de negros africanos escravizados vindos de países como Congo, Costa do Marfim e Angola.

Reconhecer essa presença é ter como referência as comunidades regionais que continuam o legado de celebrar as manifestações tradicionais e culturais pelo Brasil, transmitindo orgulho cultural, intelectual, moral e corporal em lugares como Recife, Paraíba, Alagoas e Bahia. Tenho certeza que todos estão cientes de que a dança é tão antiga quanto a humanidade, e que existem muitos tipos e formas de dança, principalmente no continente africano, e que essa arte serviu muitas funções em diferentes sociedades e em diferentes épocas.

Gabb Cabo Verde, coreógrafa, diretora de movimento, preparadora corporal e pesquisadora de danças e culturas negras.
A coreógrafa Gabb Cabo Verde, criadora da oficina técnica criativa em danças negras Celebre Seu Corpo - Divulgação

É essencial pensarmos sobre a dança e o corpo da dança como uma linguagem incorporada. Ou seja, a linguagem que geralmente acaba sendo ignorada, a linguagem de movimento, que nos fala tão profundamente, quanto as palavras, embora através de diferentes meios e camadas de experiência. Agora, dentro de cada linguagem verbal existem dialetos, jargões, coloquialismos, neologismos e assim por diante. Assim, a maneira como uma língua falada cresce, é comum que mudanças ocorram e que elementos de outros idiomas se emprestem.

Inspirada pela ótica da etnocoreografia da dança afro-brasileira, compartilho alguns elementos técnicos, estéticos e corporais próprios, os quais costumo destacar durante minhas aulas, pesquisas e estudos de dança:

Na estética tradicional da dança europeia, o torso deve ser mantido na vertical para a forma clássica correta. A coluna ereta é o centro, a régua hierárquica a partir da qual todo movimento é gerado. Funciona como uma única unidade. O torso reto não dilatado indica elegância ou realeza, e atua como o absoluto monarca, dominando o corpo dançante. De fato, esse princípio estrutural é um círculo social da visão do mundo colonialista pós-renascentista.

Em meus estudos, foi constatado que a ideia de "alcançar o divino", com movimentos e passos direcionados ao céu, queixos altos e contração do corpo, se diferenciam da estética das danças negras e de matrizes africanas, onde o aterramento do movimento corporal traz a noção do real e presente, e não o onírico e inacessível.

Nas danças negras e africanas, existe uma igualdade democrática de partes do corpo. A coluna vertebral é apenas um dos muitos centros de movimento possíveis e que raramente permanece estática. O corpo de dança africana é policêntrico, são vários centros de direção, que se encaixam perfeitamente no ritmo.

Dessa forma, a parte do corpo é jogada contra outra, e os movimentos podem se originar simultaneamente de mais de um ponto focal: a cabeça e a pelve, por exemplo. Com a polirritmia, as diferentes partes do corpo que se movem para dois ou mais ritmos simultaneamente nas danças tradicionais africanas, com sabar (Senegal), demonstram privilégios flexíveis, pernas dobradas e posturas que reafirmam o contato com a terra.

Conforme avaliado pelos critérios estéticos africanistas, o corpo dançante europeísta é rígido, distante, frio e unidimensional. E pelos padrões europeus, o corpo de dança africanista é considerado vulgar, cômico, descontrolado, indisciplinado e, acima de tudo, promíscuo.

Quando buscamos fixar uma estética negra em dança, não podemos uniformizar ela de acordo com os códigos preestabelecidos que existem na dança moderna ou no balé clássico, por exemplo.

No caso da nossa dança brasileira, podemos enxergá-la como um conjunto de conteúdos de movimentos que não se enquadram em nenhuma categoria contemporânea de dança acadêmica. Podemos perceber isso na forma que o quadril e coluna se posicionam em coreografias de passinho, dança afro (Mercedes Baptista), jongo e samba, por exemplo. Mas, contudo, a estética negra em dança evolui de acordo com seus próprios princípios técnicos e criativos, e trazem suas experiências culturais e cotidianas, e seu jeito próprio de dançar, seja no coletivo ou de forma individual.

Através da dança ou dos sonhos, acessamos pensamentos, ideias e metáforas que não podem ser percebidas de nenhuma outra maneira. De fato, as danças negras são uma literatura que é ilegível na tradução literal, e é fundamental as danças afro-brasileiras e seus precursores serem incluídas na história da dança mundial para continuarmos descobrindo nossas heranças e raízes através da nossa "própria embarcação", que é nosso corpo e dança, como canta Luedji Luna em "Um Corpo No Mundo". Com dignidade e orgulho do corpo negro em movimento.

* O presente artigo contou com a edição da jornalista Giulia M. Ebohon

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Gabb Cabo Verde foi "Um Corpo No Mundo", de Luedji Luna.

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