Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Carta ao presidente Lula

É urgente desafiar a pedagogia das ausências negras e nomear uma ministra negra ao STF

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ligia Batista

Diretora executiva do Instituto Marielle Franco, advogada e pesquisadora em Direitos Humanos. Atua nos campos de direitos humanos, democracia, participação, representação e enfrentamento a desigualdades políticas, justiça racial e de gênero na América Latina

Sou advogada de formação. Entrei na faculdade de Direito da UFF lá em 2011. Eu, que mal saía do Méier (bairro do subúrbio do Rio), passei a me ver cruzando a baía de Guanabara todos os dias por cinco anos para concluir o curso na cidade de Niterói, região metropolitana do estado. A escolha pelo Direito era um contrassenso para alguém que um dia quase decidiu por se dedicar à dança. A preocupação dos meus pais sobre os tantos desafios do mercado de trabalho —especialmente para gente preta como nós— ecoava na minha cabeça.

Os cinco anos de graduação foram traumáticos na minha vida. Logo no início, com 18 anos, ainda não tinha um nível profundo de letramento racial, mas o racismo já fazia arder a ferida e provocar a sensação de que aquele lugar não era para mim. Como chorei nesses tempos. Contava nos dedos das mãos quantas negras estudaram comigo. Em muitos momentos senti a necessidade de performar o que a branquitude esperava e imaginava de uma estudante universitária —na linguagem, no comportamento, nas formas de sociabilidade.

Uma mulher negra, sorridente, com cabelos encaracolados até o ombro, em uma imagem em preto e branco; ela usa uma gargantilha. Ao fundo, uma parede com mosaicos
A diretora executiva do Instituto Marielle Franco, Lígia Batista - Divulgação

Vivi o silenciamento retumbante de intelectuais negros, que raramente ministravam nossas aulas ou apareciam como leitura obrigatória. Vivi a formação euro-centrada, que raramente enfrentava a realidade das desigualdades, além de reproduzir práticas violentas para negros, mulheres e pessoas de favelas e periferias. Vivi assombrada por essa cultura institucional de pedagogia das ausências negras.

Ao mesmo tempo, foi também no período da universidade que entendi as origens do meu desconforto e me permiti enxergar o mundo para além da lógica estanque da letra fria das leis. Me encontrei enquanto ativista e crítica ferrenha à forma como o Direito servia à manutenção de desigualdades e privilégios, mas neguei me dedicar a carreiras jurídicas porque não me via nelas.

Construí minha caminhada acreditando que construir as instituições do sistema de Justiça por dentro não era para mim. Mas chego hoje à direção executiva do Instituto Marielle Franco, organização que se dedica a fortalecer o papel de mulheres negras em espaços de tomada de decisão, pensando que se eu pudesse conversar com a Lígia que se formou em 2016, diria que a disputa desse sistema vale a pena. E hoje só sei disso, em especial, porque finalmente pude me ver nele.

Devo essa mudança de perspectiva a todas as mulheres negras que conheci e que me ensinam até sobre a importância de suas construções no sistema de Justiça. Nesse sentido, destaco três nomes. A primeira é Lívia Casseres, defensora pública do Estado do Rio de Janeiro com atuação incansável em defesa dos direitos humanos, particularmente no acesso à Justiça para negres e LGBTQIA+. Hoje está cumprindo papel importante no governo federal, na função de coordenadora-geral de Projetos Especiais sobre Drogas e Justiça Racial da Senad.

A segunda é Adriana Cruz, juíza federal titular da 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, além de uma das idealizadoras do Encontro de Juízes e Juízas Negros (Enajun). Adriana é uma companheira de luta e grande referência, que já há muito pauta a importância de mais mulheres negras no poder judiciário.

E a terceira é Lívia Sant’Anna, promotora de Justiça na Bahia. Ela é coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia, e a atuação dela se destaca em relação a temas de enfrentamento às violências e desigualdades baseadas em gênero e raça.

Essas três mulheres são importantes exemplos do nosso grau de excelência e, acima de tudo, resiliência num país onde o papel de poder dos homens brancos na Justiça é preservado há séculos. Por isso, a nomeação de Zanin para o STF causa decepção. Nosso país tem 28% da população feita de mulheres negras e nunca, em 132 anos, teve uma ministra negra em sua mais alta corte. Nomear uma jurista negra ao STF é medida de reparação histórica e já passou da hora de virar essa chave, presidente. Com a convicção de que uma mulher negra no STF possa servir de estrela guia para uma outra noção de Justiça, aqui lhe deixo esse recado. Exigimos nos ver no poder.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Lígia Batista foi "Asas" de Luedji Luna.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.