Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Quem pode sonhar no Brasil?

Que seja comum ouvir histórias de pessoas pretas, vivas, sonhando e podendo ser o que quiserem

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Naomy Oliveira

Educadora, e especialista em políticas públicas educacionais, área em que constrói e executa políticas públicas com foco em formação, equidade racial e inovação

Qual era o seu sonho quando era criança? Você consegue explicar porque aquilo era um sonho naquela época? E hoje, qual o seu sonho? Você vive e tem condições de ir atrás dele?

O sonho do Thiago Menezes Flausino era ser jogador de futebol, o do João Pedro era concluir os estudos com boas notas e quem sabe entrar na faculdade. E qual era o sonho da Agatha? E do Kauã? Talvez eram tão jovens que não pensavam em sonhos maiores que estar com sua família, passear e brincar com seus colegas.

Todas as pessoas que citei aqui são pessoas pretas periféricas, que perderam suas vidas nos últimos anos por conta da violência. Isso não é coincidência, segundo dados do Fórum de Segurança Pública, todos os dias, ao menos duas crianças e adolescentes são mortos no Brasil e 69% das vítimas entre crianças e adolescentes no país são negras (pretas ou pardas).

Naome é uma mulher negra, de olhos escuros, com tranças no cabelo. Na imagem, ela usa uma blusa estampada.
Educadora e especialista em políticas públicas educacionais, área em que constrói e executa políticas públicas com foco em formação, equidade racial e inovação - Divulgação

Quando você pensa nos seus sonhos quando criança, e nos de hoje, consegue perceber que o lugar de onde você veio, as referências que possui e a garantia de direitos básicos, como o direito à vida, dão base para que você possa sonhar o que sonha?

O simples exercício de sonhar com o que se quer ser na vida pessoal, social e profissional, deixou de ser um exercício esporádico, ou dos chamados testes vocacionais e se tornou um dos eixos do currículo da educação básica brasileira, chamado de Projeto de Vida, a partir da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Com isso, pensar sobre o futuro, seus sonhos, em diferentes esferas, se tornou parte da jornada de todo estudante da educação básica. Mas será que de todos os estudantes mesmo?

Eu, enquanto jovem preta, nascida em Vigário Geral e criada na baixada fluminense, aos 24 anos, já formada pelo PROUNI e na minha primeira grande oportunidade profissional como trainee, quando fui questionada sobre qual era o meu Projeto de Vida, me peguei sem resposta e respondi que era trabalhar e melhorar a vida da minha família. Meu projeto de vida não era uma profissão, era dar condições básicas a minha família, meu projeto era A VIDA.

Então hoje, quando a BNCC traz em suas competências gerais Projeto de Vida, temos que dar dois passos para trás e questionar: Quem pode sonhar no Brasil? É sobre a vida de quem que esses conceitos estão sendo trabalhados?

Para que todos os jovens possam ter o direito de sonhar é necessário um trabalho articulado do Estado que primeiramente deve garantir o direito à vida, e isso inclui não ser alvo frequente de violência, ter acesso a saúde e a uma educação de desenvolvimento integral, que respeite e traga a ancestralidade (a efetiva implementação da lei 10.639 apoiaria nisso) na escola e que essa consiga despertar sonhos nos estudantes, que só existem quando entendemos a nossa verdadeira potência.

Tudo isso é um lindo discurso, e pode ser realidade através de políticas públicas eficientes, operadas por gestores públicos que entendam a população que atende. E indo além, por que não políticas públicas construídas e executadas por pessoas pretas que vivem ou viveram contextos de insegurança e escassez? Não ter essas pessoas nesses espaços de poder, também mostra quem hoje pode sonhar em ter o poder de efetivamente mudar o Brasil, através da gestão pública.

Que a gente pare de normalizar histórias de crianças e jovens pretos mortos, ou de glamourizar histórias de superação de pessoas periféricas, que só são boas para quem escuta, pois quem viveu diversas dificuldades não foi feliz enquanto as vivenciava. Que seja comum ouvir histórias de pessoas pretas, vivas, sonhando e podendo ser o que quiserem.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Neste texto, a escolhida por Naomy Oliveira foi "Pauperrecido", de Viny Santa Fé.

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