Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França

Quando haverá mulheres suficientes nas cortes?

Regra de paridade de gênero no Judiciário é louvável, mas apenas um paliativo

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Erika Donin Dutra

É advogada no Souto Correa Advogados

Entrou em vigor, na última semana, regimento interno do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que determina a obrigatoriedade de os tribunais elaborarem listas de merecimento formadas exclusivamente por mulheres, a serem aplicadas de forma alternada com listas gerais de merecimento, a cada ciclo de promoção nos tribunais de segundo grau.

A nova regra de paridade de gênero para o preenchimento de vagas na segunda instância do Judiciário é um passo rumo a uma sociedade de fato democrática. Afinal, como esperar que a interpretação e aplicação das normas do direito positivo seja desprovida de vieses e próxima da realidade das pessoas sobre as quais incidem, se essa interpretação e aplicação ocorre, majoritariamente, por decisões de homens brancos, com condições socioeconômicas e vivências muito diferentes de, no mínimo, metade da população brasileira?

Eika é uma mulher branca de cabelos claros e lisos e olhos escuros. Na imagem, ela veste uma blusa preta e argolas pequenas
Erika Donin Dutra é advogada no Souto Correa Advogados - Divulgação

Incluindo classe social e raça, estamos falando de uma minoria absoluta que domina as estruturas de poder. Contudo, a medida, embora louvável, é paliativa.

Enquanto prevalecer uma cultura que privilegia homens brancos e mantém mulheres em posições subalternas —menos remuneradas, mais sobrecarregadas, podadas de participação pública e com falas deslegitimadas (a obrigatoriedade da lista alternada para a inserção feminina não vai resolver o problema. Nem mesmo para quem está nela).

As mulheres que estão na lista, ou em posição de poder equivalente, salvo raras exceções, ainda precisam lidar com duplas jornadas, com a responsabilidade pelo trabalho doméstico não remunerado, com o cuidado de filhos e outros familiares e, o que, para mim, é pior, com a dificuldade de ser ouvida e respeitada, mesmo quando tentam performar a conduta hegemônica.

Diversos são os estudos já publicados sobre os comportamentos e estereótipos masculinos que mulheres precisam reproduzir para obter destaque profissional. Um exemplo muito comentado é o da ex-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, que teria sido aconselhada a fazer fonoaudiologia para engrossar a voz.

Se é verdade ou não, as fontes não são seguras, mas é fato que, segundo as fabricações sociais, o tom agudo, tido como de natureza feminina, não transmite a autoridade, poder e credibilidade do grave, atribuído a homens.

Porém, a universalização da conduta masculina não é louvável nem saudável. Pelo contrário, apenas aumenta as desigualdades de oportunidades e distancia as "mulheres que chegam" das "mulheres que não chegam". Seguindo essa lógica, a autoridade feminina continuará frágil e os espaços de poder serão sempre para poucas —as mais privilegiadas e habilidosas no teatro.

Não poderia deixar de salientar, também, como é doloroso celebrar uma grande vitória para um pequeno número de mulheres. O regimento (repito, louvável) elege um perfil muito específico de mulheres (brancas, de classe alta, com ensino superior completo) para promover. As demais seguem à margem, especialmente as negras, historicamente apartadas pela mentalidade colonial. De acordo com o próprio CNJ, por exemplo, se há apenas 38% de juízas, o número é ainda menor para as negras: 11,2%.

O Judiciário avançou, mas ainda está, como todas as outras instituições, longe de ser diverso e inclusivo. A diversidade e inclusão somente serão verdadeiramente possíveis após uma revisão profunda dos valores que regem a sociedade, a partir de uma conscientização e autocompreensão sobre vieses e traços culturais enraizados em nossas ações, pensamentos, julgamentos.

Finalizo com trecho do livro "My Own Words", autobiografia da juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, Ruth Bader Ginsburg, em que ela cita Elena Kagan e Sonia Sotomayor, também juízas da Suprema Corte Americana: "‘Agora Kagan está à minha esquerda e Sotomayor está à minha direita. Assim, parecemos realmente fazer parte do Tribunal e estamos aqui para ficar.’ Nos últimos anos, quando as pessoas lhe perguntam quando ela acha que haverá mulheres suficientes no Tribunal, ela responde, com um brilho nos olhos, ‘Minha resposta é: quando houver nove’." (tradução livre). Nove é o número total de juízes da Suprema Corte Americana.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Erika Donin Dutra foi "Flawless", de Beyoncé.

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