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Seu último ato

Leitora narra processo de luto após suicídio do filho

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Malu Biscaia

- Conforme, mãe, conforme!

Essas foram suas palavras quando cheguei em casa e ele e o irmão tinham desenrolado todas as fitas cassete de uma coleção de histórias infantis. O quarto onde estavam ficou com o chão forrado como se fossem serpentinas num baile de Carnaval.

Eu indignada ao ver aquela bagunça, de pé diante deles, repetia insistentemente:

- Não me conformo como vocês puderam fazer isso!

Ele, por outro lado, repetia insistentemente:

- Conforme, mãe, conforme.

Até hoje me lembro dessas palavras como um prenúncio para seu último ato.

Passados 17 anos, a chegada em casa no final do dia era de apreensão e angústia, com a expectativa de como ele estaria. Durante três meses negava-se a sair de casa, mesmo que fosse para ir até a garagem do prédio.

Sad alone woman lying the bed. Insomnia concept.
"Era uma pressão no peito como a força do Sol no raiar do dia" - Burdun/Adobe Stock

Nosso primogênito era alto, bonito, alegre e depressivo, com escaladas e tombos característicos de um bipolar. Inúmeras tentativas de terapias, com medicamentos e sessões de psicanálise. Foram sete anos de busca de uma saída que o encorajasse a enfrentar a vida. Cursou economia, administração e, por último, cinema. Começava com entusiasmo, mas esmorecia no percurso, sempre encontrando justificativas para não dar continuidade.

As drogas representavam um escape que, acredito, a princípio, apaziguavam suas angústias e, num efeito rebote, só pioravam os sintomas. No início fez uso de tabaco, seguido por álcool, maconha e cocaína. Esta última foi um baque enorme e o preconceito e desconhecimento me mantiveram inábil para seu enfrentamento.

Meu marido, sentindo-se impotente para enfrentar a situação, acreditava, e queria me convencer disso, que eu teria mais sucesso na aproximação com ele. Cheguei a frequentar um grupo de pais de dependentes químicos, mas não consegui elementos que me ajudassem. Sentia-me oprimida, angustiada e o tabu de expor o problema fez com que me fechasse e não procurasse ajuda mais efetiva, até mesmo de familiares mais próximos. O medo de expor a situação era de que ele fosse estigmatizado como drogado, inútil e fracassado.

Os primos que poderiam mostrar-se solidários também não tiveram sucesso, pelo próprio afastamento dele. Os amigos aos poucos foram sendo substituídos pelos que frequentavam os bares e baladas que facilitavam o uso de drogas.

Chegou a sair de casa e morar com a namorada. À medida que o caso foi se tornando crônico, ele trocava a noite pelo dia, evitava o convívio conosco, e meu sentimento era de que ele estava se negando a continuar a viver. Afloraram questionamentos sobre sua sexualidade e seu comportamento me causava estranheza, pois parecia estar ocorrendo uma regressão rumo a sua infantilidade.

Às vésperas de viajarmos para os Estados Unidos para visitar a família com a qual nosso caçula fez o intercâmbio, fiquei num impasse extremamente angustiante, entre ir ou cancelar a viagem. Um dia antes de viajar fui à consulta, à qual ele não quis ir, com o psiquiatra que o acompanhava. Demonstrando preocupação, perguntei se deveríamos viajar e deixá-lo com o irmão, nosso filho do meio. Encorajada a ir, decidimos manter a viagem, ainda que minha intuição mostrasse o contrário.

Ele nos levou no aeroporto. Foi a última vez que o vi. Fizemos a viagem como programado e, perto de voltarmos, falei com ele pelo telefone:

- Como você está se sentindo?

- Não estou bem, mãe.

-Filho, daqui a três dias estaremos de volta, não faça nada até chegarmos.

A resposta foi um silêncio prolongado.

Na última etapa da viagem, a devolução do carro alugado foi de madrugada. O prenúncio do amanhecer trouxe para mim uma angústia inexplicável. Era uma pressão no peito como a força do Sol no raiar do dia.

Na véspera de chegarmos, ligamos do hotel para casa para combinarmos com ele de nos buscar no aeroporto. Ninguém atende. Eu já em pânico, uma sensação de angústia avassaladora, tentei falar com o outro filho e nada.

Passados longos minutos, tentei novamente o telefone de casa. Atenderam, nada disseram e desligaram. Minha irmã não conseguiu dar a notícia. Nesse momento meu coração de mãe sabia que o pior já tinha acontecido. Em desespero consegui falar com minha outra irmã:

- Alô, não consigo falar com ninguém. O que está acontecendo?

- Malu, o Pedro fez uma besteira!

- Como ele está? Foi para o hospital?

- Não, ele morreu.

Golpeada pela notícia, fiquei muda, nem perguntei como tinha sido. Fui saber só quando cheguei.

Chegamos na madrugada do dia do enterro, deixando todas as malas para trás. Meu irmão e minha cunhada, que moram em São Paulo, foram até o aeroporto nos dar um conforto, compadecidos pela nossa imensa dor. Foi minha cunhada quem conseguiu localizar nossa bagagem e encaminhá-las dois dias depois.

O velório foi longo, muitas pessoas penalizadas, muitas com comentários chocantes como:

- Foi melhor assim, era um filho que só dava preocupação para os pais.

- Ele fez isso porque os pais faziam muito por ele.

A reação das pessoas muitas vezes é mesmo chocante e, na ânsia de confortar, falam coisas absurdas.

Não consegui chorar durante o velório, o sentimento era um misto de revolta pela atitude que ele tomou e uma cobrança de que não poderia esmorecer, uma vez que tinha dois outros filhos e um neto prestes a nascer, além de um marido que estava destruído, ainda que não deixasse transparecer.

Anos depois, uma vizinha que perdeu seu único filho em condições semelhantes me perguntou quanto tempo foi meu luto e eu respondi que foram dez anos. Ela ficou surpresa. Tempos depois, me confessou que essa resposta a fez concluir que não aguentaria. Diante disso, ela e o marido decidiram ter mais filhos através de barriga de aluguel na Ucrânia. Antes que estourasse a guerra, eles conseguiram ser pais de duas meninas, hoje com três e dois anos. São lindas, e ela disse ter amenizado sua perda através delas.

A vida segue com compensações para as perdas irreparáveis.

ONDE PROCURAR AJUDA?

Mapa Saúde Mental
Site mapeia diversos tipos de atendimento: www.mapasaudemental.com.br

CVV (Centro de Valorização da Vida)
Voluntários atendem ligações gratuitas 24 h por dia no número 188: www.cvv.org.br


Malu Biscaia é formada em biologia, casada há 44 anos, mãe de três filhos, avó de três netos e escritora amadora.

O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br

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