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Descrição de chapéu Portugal

Eu freio para caracóis

Leitora radicada em Lisboa conta sua saga com os moluscos portugueses

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Carol Santin

Recém-chegados e turistas têm os créditos da ignorância. Brasileiros nos Estados Unidos não podem ver um esquilo porque os acham muito fofinhos. Logo correm atrás deles e não importa quão adulto seja, é preciso tirar uma foto.

Quando morei em Nova Jersey discordei da placa que dizia aos motoristas: "Don’t break for squirrels" (Não freie para esquilos). Na época eu disse para a garota de quem eu cuidava: "I do break for squirrels" (Eu freio, sim, para esquilos).

Ela me explicou que a placa era para evitar acidentes de trânsito, já que frear bruscamente para esquilos poderia causar uma colisão traseira. Prometi silenciosamente que nunca mataria um esquilo.

A promessa durou pouco. Um dia, em numa manhã fria, eu dirigia com muito sono para levar a adolescente para a escola e quando olhei no retrovisor só pude reagir: "Oh não, aquilo foi um esquilo? Está morto?". Sangue no asfalto e o pobre estatelado no chão.

Pessoas observam intervenção artística "Caracóis", em Santiago - Jorge Villegas - 28.nov.22/Xinhua

Superei a morte do esquilo. Anos depois desembarco em Lisboa. A primeira vez que passei em frente à Casa dos Caracóis, no bairro do Campolide, me pus a pensar. Que loja bonita, será que é uma pastelaria? Caracóis, que nome curioso.

O restaurante vizinho ao prédio onde morei tinha uma folha de papel sulfite escrita a mão na porta: "Temos caracóis". Será que são os mesmos da Casa dos Caracóis? Caracóis são de comer, concluí, arquivei a informação e segui a vida.

Nunca ouvi falar em caracóis. Sempre ouvi falar de caramujos. Caramujos sempre me foram descritos como aqueles que carregam a casa nas costas. "Vais fazer como um caramujo e levar a casa nas costas?" Não sei quantas vezes já ouvi esta frase, usada como um conselho. Se você não é um caramujo, melhor ter mais prudência. Só os caramujos levam a casa nas costas.

O caminho a pé da minha casa para o campus da universidade passava por um parque margeando uma grande avenida. Certo dia, caminhando, eu olhei para o chão e achei que vi uma pedra, me aproximei e reconheci: era um caracol. Caracol é mesmo um caramujo!

Mais adiante, mais um e mais outro, todos atravessando a perigosa calçada de um lado para o outro da grama. Então deve ser por isso que os portugueses comem caramujo por aqui: porque tem muitos. Os franceses também comem caramujos, que por lá são chamados "escargots". E num misto de "que bonitinhos" e "que nojo", passei a observá-los sempre que passava por esse trecho do parque.

E de tanto observá-los, na sua marcha lenta, obstinados a cruzar as calçadas, tão pequenos e frágeis eu me tornei uma pessoa que freia para caracóis. Não quero atropelá-los, nem quero que sejam atropelados.

Parece que ao final da tarde ocorre o rush dos caracóis: são muitos e de todos os tamanhos, uns parecem papais e mamães caracóis de tão grandões, outros, penso que são bebês caracóis por serem tão pequenos.

Será que os caracóis são uma praga urbana em Portugal como são os esquilos nos Estados Unidos? Não sei, mas já cheguei mais perto para admirar sua casca e corpo de gelatina. E por que não, também tirar umas fotos para enviar aos amigos e familiares do Brasil: "Olha o que eu descobri, aqui tem muito caramujo!".

Já prometi nunca atropelar um esquilo e não consegui cumprir, agora ando a frear para caracóis, mas na minha mente uma pergunta não quer calar: será que são gostosos?

A chef argentina radicada no Brasil Paola Carossela sempre fala sobre a importância de comprarmos ovos de galinhas de vida digna. Para ela, o bem-estar animal é importante e galinhas de vida digna são criadas soltas e com espaço.

Seriam então os caracóis que desafiam as calçadas de Lisboa, caracóis de vida digna? Seriam estes os de comer? Será que os que são servidos nos restaurantes são de outro tipo?

Ainda tenho muitas perguntas sem respostas sobre esse universo gastronômico que descobri há tão pouco tempo em Lisboa e que até então achava que era coisa de francês. Ainda não me convenci nem de provar, nem de não provar caracóis. Mas não há pressa, por enquanto farei como eles, devagarzinho eu desbravo mais sobre a cultura e a culinária portuguesa, e claro, sempre tomando cuidado por onde eu piso.

Carol Santin vive em Portugal, onde cursa o mestrado em edição de texto na Universidade Nova de Lisboa. É autora do livro: "Intercâmbio para todos: o que você precisa saber para estudar, trabalhar e viver no exterior" e criadora do canal do YouTube: "Carol Santin - Embarque Comigo". Fora do horário comercial, escreve crônicas, para quem sabe um dia escrevê-las em horário comercial.


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