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Interação

Carnaval, cão e caretas

Leitor relembra figuras folclóricas horripilantes das quais fugia durante a infância em Brejões (BA)

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Francisco Solano de Santana

Na minha infância, lá pelos meus 10 anos, já vivendo na cidade, a festa de maior sucesso era o Carnaval. A folia em Brejões (BA) era diferente e muito mais emocionante.

O costume eram as "caretas" e o "cão", personagens que perambulavam pela cidade praticando maldades e espalhando o terror. As "caretas" eram pessoas que colocavam máscaras e roupas coloridas e amedrontavam crianças. O "cão" vestia apenas um calção de cor preta, que cobria as partes íntimas, e com o corpo todo pintado de carvão, com chifres, rabo e língua de cor vermelha, bem como um chocalho pendurado no pescoço anunciando sua chegada e espalhando o terror.

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Caretas de Acupe desfilam no Fuzuê, pré-Carnaval de Salvador - João Pedro Pitombo/Folhapress

Para vocês terem uma ideia, só de vê-lo da nossa casa, do lado oposto da cidade, distante cerca de mil metros, eu tinha arrepios de pavor e medo. Quando ele despontava na minha rua, atravessando a ponte sobre o rio da cidade, de imediato eu corria para dentro de casa e fechava as portas e as janelas.

Pelas frestas da janela eu o via passando pelo passeio de casa, procurando uma vítima. Aquela visão horripilante causava-me pavor a ponto de tremer como vara verde e só saía de casa quando tinha certeza de que ele estava bem longe.

No entanto, vez ou outra, distante de casa, eu me sentia acuado por um monte de "caretas". E uma delas, particularmente, era violenta e nos batia com vara verde. Depois, constatei que se tratava de um menino de nome Elísio, que era mau, perverso por natureza.

Em outras oportunidades quando me arriscava a ir até a praça principal era surpreendido pelo "cão" que surgia do nada, compelindo-me a abrigar-me na igreja aonde ele só chegava até as escadarias e de costas, já que representava o "capeta" na casa do Senhor e isso dificultava sua missão de nos capturar e arrastar para o mato, onde eu imaginava que nos executaria com uma faca ou um machado.

Em outros lugares quando éramos surpreendidos pelo "cão" costumávamos nos encostar nas paredes, porque, conforme a regra, ele não podia nos apanhar nessa situação e nos levar a algum lugar para nos torturar até a morte. Assim, o "capeta" ficava se esfregando em nosso corpo para deixar a sujeira em nossas vestes, forçando-nos a nos afastar de paredes, postes, para corrermos e, então, ele nos alcançar, porque ninguém corria mais que aquele diabo.

Ao final do dia descobríamos que, caso fôssemos apanhados de jeito, o único castigo era lavar o "cão" no rio com caco de telha e sabão, livrando-o da pintura que lhe dava aquela aparência horripilante, e, então, ele nos revelava sua verdadeira identidade. Geralmente era um jovem de alta estatura e atlético por natureza de quem não conseguiríamos escapar e que poderia atravessar a cidade dada a sua insistência em nos meter medo, aproveitando-se das nossas fantasias de crianças.

Essa encenação era obra do Prefeito que contratava uma pessoa para mexer com o imaginário das crianças, talvez com o propósito de nos mostrar como seria a vida depois da morte caso não fôssemos meninos obedientes, pessoas do bem.

Nunca mais cometi maldades para não ter de enfrentar, depois da morte, criatura tão assustadora que me causa arrepios só de imaginar como seria viver no inferno e ter de me submeter aos caprichos do capeta. Estou fora, preferi seguir o caminho do bem; obedecer aos meus pais, aos meus professores, aos mais velhos, ser bom aluno, trabalhar e ser solidário com o próximo, para não ter de enfrentar, cara a cara, depois da morte, aquela figura do demônio.

Francisco Solano de Santana é delegado de polícia e ocupante da 14ª cadeira da Academia de Ciências, Letras e Artes dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo.

O blog Praça do Leitor é espaço colaborativo em que leitores do jornal podem publicar suas próprias produções. Para submeter materiais, envie uma mensagem para leitor@grupofolha.com.br

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