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Descrição de chapéu Portugal

O golden retriever das palavras

Leitora discute dificuldades trazidas pelo nem tão novo acordo ortográfico e as joias da língua portuguesa

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Carol Santin

O novo (agora já velho) acordo ortográfico da língua portuguesa passou a ser de uso obrigatório no Brasil em 2016, mas suas discussões e tentativas de unificação do uso da língua em diversos países lusófonos vêm ainda de antes, dos idos 2008.

Todos os livros publicados no Brasil desde então vem indicando que: "Este livro foi revisado segundo o novo acordo da língua portuguesa". No ano em que o uso do novo acordo se tornou obrigatório, instalou-se um pequeno caos nas escolas e nas cabeças de tantos brasileiros.

A gente que já sofria para aprender o que é um hiato, ditongo ou tritongo agora teria que mudar acentos de lugar ou simplesmente matá-los. O trema jaz morto, nunca mais se soube se micro-ondas e infraestrutura é junto ou separado. E eu, que nunca acerto uma crase e já me embaralhava com vírgulas, pensei "agora danou-se de vez".

Lupa mostra verbete "ab-rupto" reproduzido do dicionário da ABL com o novo acordo ortográfico - Danilo Verpa - 13.jan.09/Folhapress

Uma professora de redação universitária. da qual eu fui assistente por um período, dizia que era tudo muito simples e criou a regra: os diferentes se atraem e os iguais se repelem se referindo às vogais e consoantes. Mas claro que no português, dentro da regra há mais um tanto de exceções. O que era separado, agora é junto e precisa dobrar o "s" ou o "r" como em minissaia ou em corresponsável. O PDF explicativo dessa simplicidade toda tinha cinco páginas (seria uma contradição?) e por um tempo andei com ele na bolsa como se fosse um documento de identidade.

Do outro lado do Atlântico, os portugueses muito espertos vêm desde então ignorando solenemente este acordo e escrevendo e falando o português que sempre falaram. E do que se tem notícia continuamos a nos entender.

O novo acordo perdeu o bonde daquilo que seria realmente relevante, enquanto falantes do português, de adotar em todos os países e unificar o uso, não da gramática, mas de algumas palavras.

Estivesse eu envolvida no desenvolvimento deste novo acordo, defenderia a adoção da palavra "bocadinho" como prioridade máxima. No Brasil e em Portugal, como tenho notado também nestas breves três semanas vivendo em Lisboa, ambos os países gostam de diminutivos. O "inho/inha" é nosso, ninguém tasca, e já começamos concordando.

No Brasil, porém, usamos a palavra "pouco" em seu diminutivo "pouquinho" para expressar algo que gostamos, queremos ou fazemos. Alguns exemplos para ilustrar: "Cheguei em casa cansada e estudei só um pouquinho para a prova", "Gostaria de um pouquinho mais de água", "Falo um pouquinho de inglês".

Embora a palavra "pouquinho" atenda a sua função em si, ela carece do charme do "bocadinho". Pouquinho é simpático, mas lhe falta bossa, lhe falta samba no pé. Minha sobrinha me pedindo para brincar só "mais um pouquinho" é completamente diferente dela me pedindo para brincar só "mais um bocadinho". Evidente que o efeito da palavra também está na sua entonação, no sotaque e os brasileiros teriam que, com esta palavra, ir além e sair da zona de conforto. Teríamos que, ao menos com "bocadinho", ser mais cariocas ao falar.

Bocadinho é o golden retriever das palavras. Quando alguém fala bocadinho perto de mim, tenho que me conter. Quero-lhe apertar as bochechas, levar para casa, ser sua melhor amiga. Esse pessoal, tão culto, tão sábio da gramática, não entendeu nada. É bocadinho que merecia estar lá. É de bocadinho em bocadinho que vamos diminuir essa distância do mar entre nós.


Carol Santin vive atualmente em Portugal onde cursa o mestrado em edição de texto na Universidade Nova de Lisboa. É autora do livro: "Intercâmbio para todos: o que você precisa saber para estudar, trabalhar e viver no exterior" e criadora do canal do Youtube: "Carol Santin - Embarque Comigo". Fora do horário comercial, escreve crônicas, para quem sabe um dia escrevê-las em horário comercial.

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