Sons da Perifa

Sons da Perifa - Jairo Malta
Jairo Malta
Descrição de chapéu

Não espere impacto social no filme de Claudinho e Buchecha; é sobre música

'Nosso Sonho' detalha a amizade dos músicos, a ascensão da carreira da dupla até a tragédia, e isso basta

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São Paulo

Uma dupla de jovens deixa sua cidade natal após enfrentar uma vida de miséria, fome e dificuldades financeiras. Eles experimentam uma ascensão social dramática, conquistando fama e luxos. Isso é apenas uma das muitas histórias que são replicadas na indústria musical e retratadas no cinema. Poderíamos estar falando de "2 Filhos de Francisco: A História de Zezé di Camargo & Luciano" ou da série "As Aventuras de José e Durval", que conta a trajetória dos irmãos Chitãozinho e Xororó. Em ambos os casos, o impacto social da carreira dos cantores não foi um tema discutido. Então, por que esperamos que "Nosso Sonho", um filme sobre a carreira dos funkeiros Claudinho e Buchecha, aborde questões sociais mais profundas?

Cena do filme ‘Nosso Sonho’, a história de Claudinho e Buchecha
Cena do filme 'Nosso Sonho', a história de Claudinho e Buchecha - Angela Goudinho/Divulgação

Uma obviedade é que a violência e a desigualdade vivida no centro-oeste, onde emergiram as duplas sertanejas, não são tão evidentes como as vividas nas favelas do Rio de Janeiro, onde se passa o filme em questão. No entanto, em termos gerais, sempre que a cultura periférica nas grandes metrópoles é retratada, o impacto social conhecido como o "favela venceu" tende a ser a principal ênfase da trama.

É verdade que Claudinho e Buchecha foram um marco no funk. Eles abordaram temas de amor e respeito pela raça nos anos 1990, em uma época em que era mais comum ver músicos negros falando sobre boêmia, festas, vida cotidiana e empoderamento nas periferias. Isso não foi por acaso; a dupla fazia parte de uma geração em que era necessário combater a estigmatização do homem negro. O chamado "Pagode 90" de São Paulo também seguiu essa abordagem.

Uma matéria no "Tab Uol", por exemplo, relata como o Pagode 90 humanizou o homem negro, e grupos como Katinguelê, Soweto e Negritude Jr., ao incluírem o marcador racial em seus nomes, apresentaram um retrato inesperado do negro para a sociedade: um sujeito que chora, morre de amor, manda telegramas e escreve cartas de amor.

Humanizar histórias de origem periférica, tratando os indivíduos e suas experiências de forma autêntica e focando exclusivamente em suas peculiaridades e trajetórias que os levaram até ali, é também um direito do artista negro que alcança a fama. Se sempre precisamos destacar o "marco temporal" e o impacto que aquela história teve na sociedade, em vez de apenas considerá-la como uma obra de arte ou expressão artística, quando se trata da trajetória de artistas negros, algo está errado.

Mas, ao mesmo tempo, é importante destacar algo óbvio para aqueles que são negros: você já percebeu que, muitas vezes, para que algo produzido por um negro ganhe relevância na mídia, é necessário que aborde questões relacionadas à raça ou à favela? Isso não se limita à indústria audiovisual. Por exemplo, quantos artistas plásticos negros alcançam relevância sem retratar a raça em suas obras? Seguindo esse raciocínio, por que um filme sobre dois jovens negros moradores de favela é obrigado a falar sobre o impacto social de sua arte? Isso é, na verdade, um condicionamento deixado pela estrutura com a qual estamos familiarizados.

Não estamos argumentando sobre o impacto social que músicos não negros tiveram em seus territórios de origem, muitos deles também periféricos. Isso responde a uma pergunta que aqueles que são negros frequentemente se fazem: por que eu preciso ser o melhor em tudo? Basicamente, por que a sociedade obriga o jovem negro a buscar sua relevância como destaque ou o condiciona a ser apenas mais um.

Em um vídeo que se tornou viral, KL Jay, DJ do Racionais MCs, foi questionado se o grupo realiza algum trabalho social. Com o disco em mãos, o rapper respondeu: "esse é o trabalho social dos Racionais". Em outro momento, no DVD "Mil Trutas e Mil Tretas", Mano Brown, líder do grupo, afirmou: "a gente só quer andar pelo campo, descalço, andar a cavalo". Não é justo esperar que todo e qualquer movimento cultural originado na favela tenha impacto nas comunidades favelizadas, ou que suas histórias tenham valor apenas por isso, quando não esperamos o mesmo de outros grupos étnicos.

Por outro lado, a trajetória de sobrevivência e a ascensão financeira de artistas periféricos, além do valor socialmente atribuído a eles pela indústria e mídia, quando vista da ótica periférica, já é algo gigante, inspirador e transformador. É como dizer: o indígena não precisa usar cocar para sabermos que é indígena. A história de Claudinho e Buchecha não precisa ter cenas de lugares pacificados para sabermos como eles foram importantes para a favela e para todo o movimento do funk.

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