Thaís Nicoleti

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Thaís Nicoleti

O resgate da autoestima perdida

Duzentos anos depois da Independência, norma culta é vista como instrumento de opressão do colonizador

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O escritor Machado de Assis - Reprodução

Não é de hoje que gramáticos e linguistas travam suas batalhas em torno da língua. Estes últimos a tratam como objeto científico, portanto rechaçam as interferências normativas daqueles, que estariam tentando impedir a sua evolução natural. Grosso modo, gramáticos fazem correções à luz de um cânone e linguistas explicam os fenômenos que se apresentam sem emitir juízo de valor, ou seja, sem jamais atribuir as noções de certo e errado a quaisquer realizações linguísticas.

Essa tensão entre duas formas de tratar o mesmo objeto, pelo menos à primeira vista, aloca os dois grupos em campos opostos – e não demora que a torcida se acomode de um lado ou de outro, convencida por um dos grupos ou ao sabor da própria conveniência. Quando levadas mais a sério, essas questões podem resultar em avanços para os dois lados. Sem ir muito longe, não há linguista no Brasil que não respeite o gramático Evanildo Bechara ou seu mestre Said Ali, embora na universidade as gramáticas sejam escrutinadas sobretudo com o objetivo de mostrar suas falhas.

Há coisa de duas décadas mais ou menos, as célebres "dicas de português" faziam sucesso na imprensa. Acreditava-se, talvez, que fosse possível dar às enfadonhas aulas de português, cheias de "decorebas", um tratamento mais ligeiro e agradável, trazendo a discussão linguística para o cotidiano das pessoas. A reação a essa moda não tardou. Vários linguistas passaram a ocupar-se desse fenômeno "midiático", que, ao simplificar as questões, reduzindo-as ao veredicto de "certo" ou "errado", estaria prestando um desserviço aos estudos linguísticos.

A crítica da universidade foi absorvida por esses professores, que, no entanto, continuaram dando as mesmas "dicas", então com uma ressalva: aquelas orientações tratavam da "norma culta" do idioma, donde ninguém estaria condenado por usar quaisquer outras variantes nos mais diversos contextos etc. Reconhecia-se a existência de variantes linguísticas e, em seguida, apresentava uma explicação sobre o uso formal da língua, a chamada "norma culta".

Faça-se aqui um parêntese: a "variante" é um conceito sociolinguístico. Por exemplo, uma construção como "Nós vai lá amanhã" não é propriamente "errada", mas constitui uma variante linguística, uma vez que não é de uso aleatório ou fortuito, mas constante em determinados grupos da sociedade. As lições de português dos professores de gramática, em geral, não contemplam essas variantes, mas, sim, o padrão culto, considerado adequado aos textos acadêmicos, jurídicos, científicos, filosóficos, jornalísticos, literários...

Esse princípio de "adequação" é visto como elitista, pois está associado ao padrão linguístico empregado pelas classes dominantes, que, mais escolarizadas, reproduzem o cânone fixado pela tradição literária e também pelos textos acadêmicos, filosóficos etc. Fato é que reproduzimos a língua do grupo a que pertencemos. É possível que, não fossem as grandes diferenças socioeconômicas existentes no Brasil (e suas consequências no processo educacional), não estivéssemos às turras com o cânone, que, hoje, 200 anos depois da Independência, é visto como instrumento de opressão do colonizador.

É importante notar o deslocamento que vem sofrendo a já envelhecida discussão entre gramáticos, que normalmente se valem dos exemplos extraídos de obras literárias para defender a legitimidade (ou não) de certo uso, e linguistas, que trabalham com a "língua viva" (registro espontâneo). Surge agora um novo argumento contra o cânone, o de que seria europeu, branco e, portanto, "tóxico".

A norma culta brasileira, portanto, deve libertar-se desse cânone num movimento de resgate da autoestima combalida por tantos anos de estudos gramaticais baseados em textos de Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Augusto dos Anjos e tantos outros, que oferecem aos gramáticos e aos dicionaristas a abonação de um uso ou outro.

O que se propõe, aparentemente, é o estabelecimento de um cânone brasileiro, numa espécie de movimento de libertação do "português europeu". Esse novo padrão seria extraído de textos acadêmicos (atuais) e de textos de jornais. Como os jornais constituem o corpus privilegiado na captação da "língua viva formal", é importante que sejam aposentados os seus revisores e consultores de língua portuguesa, vistos como gente retrógrada, subserviente ao cânone europeu, que vive de papaguear acriticamente o que dizem os gramáticos.

Esse resgate da autoestima linguística do brasileiro, no entanto, em nenhum momento implica rechaçar os anglicismos empregados por puro modismo (como "take away") ou as pseudotraduções (do tipo "aplicar para a universidade", "focar em", "testar positivo", entre outras) ou derivações do tipo "draftado" etc. Tais usos são cada vez mais frequentes nos textos da imprensa, nos quais, afinal, é registrado o que está em circulação. Não espanta, portanto, que venham a integrar o novo cânone brasileiro, que, então liberto da norma culta de matiz europeu, poderá livremente mimetizar a língua inglesa.

Além disso, os linguistas saberão explicar, por exemplo, por que motivo a expressão concessiva "ainda assim" (um sinônimo de "mesmo assim") agora assume a forma "ainda sim" nos textos jornalísticos. Um estrangeiro tenderia a não distinguir "ainda assim" de "ainda sim", pois ambas as sequências soam igualmente aos ouvidos. Ocorre que, até onde se sabia, não existia uma expressão "ainda sim" com valor concessivo, como agora é muito frequente em alguns dos grandes jornais brasileiros, saída da pena de nossos escribas "made in Brazil", não raro oriundos do meio acadêmico.

Mesmo a velha exigência de sentenças com sujeito e predicado parece estar sendo flexibilizada. Lendo na imprensa um texto de uma pessoa que se apresenta com muitos títulos universitários, acrescidos da informação de ter cursado um "pós-doutorado", confesso que me diverti um pouco com o debate entre os leitores que o comentavam. Uma leitora elogiava as ideias apresentadas, mas pedia um revisor porque havia detectado muitos erros gramaticais e períodos com sujeito sem predicado; outro apareceu e sentenciou: "Nada que deixe o artigo mudo. Ele disse o que tinha que dizer! Para de ser chata!".

Enfim, sempre é tempo de atualizar o cânone, coisa que os mais fervorosos gramáticos sempre fizeram, ainda que lenta e parcimoniosamente, à espera de que as mudanças se consolidassem. Ao rechaçar o conhecimento acumulado pela tradição, no entanto, caminhamos para a ausência de padrão e, a longo (ou médio) prazo, como se pode antever na precariedade da percepção da sintaxe, para a dificuldade cada vez maior de comunicação.

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