Thaís Nicoleti

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Escrever, uma tarefa delegada às máquinas?

Robô que sabe escrever pode significar valorização da linguagem oral

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Logotipo da OpenAI, desenvolvedora do ChatGPT - Florence Lo/Reuters

Última novidade no terreno da tecnologia, o aplicativo ChatGPT impressionou o público por sua capacidade de redigir textos "como se fosse um ser humano". Em linhas gerais, o sistema aprendeu a escrever com a imensa quantidade de arquivos de texto armazenados em seu "cérebro". Estará a linguagem escrita sendo relegada a segundo plano, sendo a produção de textos passível de ser delegada a uma máquina?

O aplicativo, segundo consta, é capaz de fazer resumos e paráfrases e, ao que tudo indica, diferentemente da maioria dos humanos falantes de português, não tem dificuldades de aplicar com correção o acento indicativo de crase. Tecnologias, como sabemos, costumam atender a necessidades – e não há de ser diferente o caso dessa. Em geral, substituem tarefas que nos tomam tempo e, por serem mecânicas, podem ser delegadas. O cobrador de ônibus, que era necessário quando os passageiros pagavam a passagem em dinheiro, é facilmente substituível por um sistema de leitura de cartão. Escrever textos será, então, uma tarefa "mecânica", que pode ser realizada por um sistema artificial?

Aparentemente, a resposta é afirmativa, pois não se empenhariam vultosas quantias no desenvolvimento de um projeto sem utilidade. Ora, a inteligência artificial consegue fazer em segundos o que nós, humanos, demoraríamos longo tempo para conseguir sem a certeza de chegar a bons resultados. Qual é a palavra que não vem à mente? Qual é o termo mais preciso? O robô resolve a parada antes mesmo de formularmos a questão.

Estudantes podem ter ficado animados em contratar esse auxiliar para realizar suas tarefas de casa, mas, se fizerem isso, por óbvio, as tarefas terão perdido sua razão de ser. Por que professores pedem resumos, paráfrases e exercícios de redação? Toda a vida acadêmica tem sido construída pela prática de ler e produzir textos. Entende-se que a capacidade de expressão verbal acompanha a maturidade intelectual. Quanto mais se lê, mais se aprende a escrever. A leitura provoca nossos pensamentos, e o texto é uma forma de organizá-los. Organizados, constituem conhecimento.

Cabe perguntar se desejamos mesmo delegar aos robôs a tarefa de organizar nossas ideias, como se essa organização nos fosse algo alheio. Queremos que se exprimam em nosso lugar, com as palavras que algum algoritmo escolher? Por trás de um robô, existe um programador, a quem, em última instância, estaremos confiando, como se fosse coisa menor, a expressão de nossos pensamentos. A questão mais importante, no entanto, talvez nem seja essa, pois "brigar" com tecnologia nunca trouxe bons resultados. Esta chega, em geral, como resultado de alguma demanda.

Não é de hoje que, graças à tecnologia, sabemos que nem mesmo textos de jornal, em geral pouco extensos, são lidos até o final. Muita gente se contenta com o título e encaminha aos amigos pelo celular um artigo ou notícia que não leu e que talvez leia em algum momento posterior ou que talvez nunca venha a ler. Outros há que se aventuram até o primeiro parágrafo. Quantos terão chegado até aqui? Se não temos tempo de ler, que dirá de escrever, tarefa ainda mais complexa? Mesmo assim, escrevemos.

Os mecanismos de busca, hoje, são capazes de detectar nos textos as informações relevantes para quem as procura. É claro que quem escreve deve ajudá-los, usando a linguagem mais simples e objetiva possível para que o robô – que, afinal, é só um robô – possa encontrá-las e oferecê-las ao consulente. Em outras palavras, os robôs de busca já são os mediadores entre o autor e o leitor. É claro que ler é muito mais que "procurar informações" em um texto, mas também pode ser apenas isso. Textos meramente informativos, ao que tudo indica, podem, sim, ser escritos pelo ChatGPT, que saberá melhor que qualquer humano a forma ideal de se comunicar com os robôs de busca.

O campo da linguagem, no entanto, embora contenha muitos dados objetivos, passíveis de aprendizado pelos sistemas matemáticos da inteligência artificial, dificilmente será dominado, em sua totalidade, por robôs. No processo comunicativo, nem sempre nos damos conta de quantas coisas não dizemos explicitamente, mas estão pressupostas ou subentendidas no contexto. Nós, humanos, quando dizemos, por exemplo, que alguém parou de fumar, não precisamos explicitar com palavras que a pessoa era fumante, pois isso está pressuposto na forma verbal "parar de" nesse contexto. Da mesma forma, fazemos incontáveis suposições com base em indícios, que não precisam ser explicadas ao pé da letra, pois são plenamente compreensíveis por esta nossa misteriosa inteligência natural, que a todo momento relaciona o que se diz no momento com o que já foi dito antes em outro lugar, coisa que o aplicativo não consegue fazer.

Também somos capazes de grandes estripulias linguísticas, como exprimir nossos pensamentos por meio de paradoxos, que são aparentes absurdos (por exemplo, o "contentamento descontente" com que Camões definiu o amor) e até mesmo pela ironia, que é o prodígio de dizer uma coisa querendo dizer o seu oposto, ou pela preterição, que consiste em dizer que não se está dizendo o que se está efetivamente dizendo ("Não vou chamá-lo de grosseiro porque seria uma indelicadeza", por exemplo).

Mesmo considerando que o robô não é capaz de dominar todos os recursos da linguagem verbal, sua chegada pode ser o sinal de que boa parte dos textos escritos são repetitivos e meramente informativos, não sendo, portanto, expressões individuais. De resto, não podemos ignorar que, graças à tecnologia, a comunicação oral tem ganhado considerável espaço. Qualquer um que pesquise o que quer que seja na internet vai encontrar vídeos, desde aquele que ensina a instalar o varal de teto até aquele que explica a filosofia de Hegel. Nada nos impede, aliás, de assistir a eles em sequência, pois, no nosso modo fragmentado de viver, um e outro podem ter a mesma importância.

A escola, talvez num futuro breve, deixe de pedir textos escritos aos alunos, que, afinal, já são tarefa que o robô pode desempenhar, embora devamos ter em mente que a máquina só está apta a "criar" o que já existe, isto é, consegue organizar ideias, mas não cria efetivamente nada. Ainda assim, a questão do plágio, uma grande preocupação de natureza ética no meio acadêmico, ganha novos contornos. O uso do aplicativo para fazer paráfrases, por exemplo, seria eticamente aceitável?

Tudo leva a crer que a capacidade de se expressar oralmente passe a ser exigida dos estudantes, como, aliás, muito se fez no passado – pelo menos, até que se invente um robô capaz de falar por nós.

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