Thaís Nicoleti

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Descrição de chapéu

O rooftop do Museu da Língua Portuguesa e o inglês empresarial

Predomínio do inglês provoca ruído na comunicação entre falantes do português

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O terraço do Museu da Língua Portuguesa, na Luz, centro de São Paulo - Eduardo Knapp/ Folhapress

Foi objeto de muitos comentários e de alguma celeuma nas redes sociais o recente uso do anglicismo "rooftop" em uma reportagem de jornal sobre a abertura de um café no "terraço" (ou na "cobertura") do prédio do Museu da Língua Portuguesa. O uso da palavra inglesa é cada vez mais comum nas páginas dos periódicos, pois está na moda instalar bares no topo de edifícios, de onde se tem vista panorâmica da cidade. O incômodo desse caso, em particular, deu-se por se tratar do "rooftop" de uma instituição dedicada à língua portuguesa. Configurou-se uma espécie de ironia não planejada.

O fato é que, por mais que o emprego de estrangeirismos seja justificado pelos linguistas, sempre atentos ao dinamismo da língua, a percepção dos próprios falantes, que não são cientistas da linguagem, diz algo importante sobre nossa relação com o idioma. Pareceu aos comentadores, embora nem todos se tenham dado conta disso, que foi uma espécie de desrespeito (ou de falta de etiqueta) usar um anglicismo de entrada recente no idioma para noticiar algo relativo ao Museu da Língua Portuguesa. Se fosse em outro contexto, "rooftop" não teria provocado discussão; da mesma forma, se o termo em questão, no mesmo contexto, fosse "show" ou "marketing", é bem provável que ninguém tivesse dado atenção ao caso, pois esses estrangeirismos, ao que tudo indica, estão claramente incorporados no registro cotidiano da maioria dos falantes.

Afinal, como lidamos com os estrangeirismos? Recente reportagem da Folha acerca do uso do inglês como jargão das empresas mostra que o excesso de anglicismos desnecessários – como "call" (chamada telefônica ou de videoconferência) ou "budget" (orçamento), entre inúmeros outros exemplos – tem causado certo desconforto e muito ruído na comunicação.

Termos como "meeting" ou "invite", por exemplo, embora desnecessários, pois equivalentes a "reunião" e "convite", respectivamente, têm seu uso estimulado pelas ferramentas de videoconferência, cujos comandos estão em inglês. No auge da pandemia de Covid-19, quando as reuniões virtuais ultrapassaram o ambiente empresarial, tornando-se muito comuns em escolas e no jornalismo da internet, surgiu em português a palavra "mutado" ("Você está mutado"), derivada do comando "mute" ("mudo", em inglês). É claro que essa palavra, embora muito usada, não é candidata a ser dicionarizada, pois tem equivalente em português com o mesmo sentido. Mesmo assim, muitas palavras novas, inclusive chegadas por empréstimo, incorporam-se à língua rapidamente. Em 2009, o dicionário "Houaiss" já tinha 400 mil palavras registradas.

No caso do inglês empresarial descrito na reportagem ("Pode participar de um meeting ASAP para falar sobre o budget da campanha e fazer um brainstorming para selecionarmos os melhores insights? Vou te mandar um invite para a call, assim discutimos o que será importante nesse job"), o que se observa é a criação de uma gíria local. Não se trata de termos técnicos de uma área profissional, mas de um código de inclusão/exclusão. Pertencer ao grupo demanda compreender e usar esse tipo de linguagem.

Fique claro que isso não é falar inglês, pois quem se comunica dessa forma ainda está empregando o português, como se depreende da estrutura das frases. O acúmulo de anglicismos visa a criar um efeito de modernidade ou simplesmente a mimetizar a identidade cultural dos norte-americanos. Em empresas multinacionais, exige-se dos colaboradores que sejam capazes de se comunicar, de fato, em inglês quando necessário, mas isso não tem nada a ver com falar "inglês em português" – ou vice-versa.

Se a sigla "ASAP" ("as soon as possible", ou "o mais rápido possível") tem deixado muita gente confusa em terras brasileiras, como já aconteceu com o francês "RSVP" ("répondez s’il vous plaît", ou "responda, por favor"), há quem adote o sistema mês/dia dos americanos sem avisar... "Reunião em 05/06", ou seja, no dia 6 de maio, não no dia 5 de junho. Sem o ano no início (2023/05/06, por exemplo), o uso promete boas confusões por aqui. Desnecessário fazer isso, exceto, é claro, se o texto todo estiver em inglês.

O título da reportagem citada ("Feedback ou retorno: entenda por que jargões corporativos em inglês são febre"), curiosamente, opõe "feedback" a "retorno", como se este último nada tivesse a ver com o inglês. "Retorno", em português, é (ou era) "volta". Foi há pouco tempo que ingressou nos dicionários com o sentido de "resposta" ou "contato decorrente de outro anterior" (dicionário "Aulete"), o que se deu sob a influência do inglês ("return"), em que já se registrava esse sentido.

A própria Folha, em seu antigo "Manual da Redação", recomendava evitar a expressão "retornar a ligação", substituindo-a por "responder à ligação", "ligar de volta" ou "atender", norma que deixou de existir apenas em 2018, com a nova edição da obra. Não perceber "retorno" na nova acepção como empréstimo é explicável pelo fato de ter sido incorporado novo significado em uma forma do português, diferentemente de "feedback", em que a forma também é do inglês. A propósito, "corporativo", no sentido de "empresarial", também é influência do inglês.

O fato é que a velocidade de ingresso dos estrangeirismos parece ter aumentado bastante, o que pode dever-se ao uso constante da internet e ao intercâmbio maior entre os idiomas. Como o inglês é a língua predominante nesse meio, a tendência é que sua influência se torne cada vez mais presente nas demais.

É claro que não podemos deixar de considerar que essa posição dominante da língua inglesa no planeta é reflexo da supremacia político-econômica dos Estados Unidos. A linguística usa o conceito de "adstrato" para se referir a esse tipo de influência de uma língua sobre outra, que independe de um processo de colonização com invasão territorial. Esse, porém, é outro assunto.

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