Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu dia dos pais

Passei anos bebendo e dizendo que era para provocar meu pai

Quando o álcool está no comando, não há espaço para beijos, bilhetes de amor, ensinamentos ou agradecimentos

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Meu pai é alcoólatra. Escrevo esse post no domingo, Dia dos Pais, pensando em tantos pais que estão vivendo um dia difícil. Que estão sem falar com seus filhos, que se arrependeram de coisas que fizeram, que ainda não conseguiram largar a bebida e passaram o dia olhando o porta-retratos alheio, as redes sociais alheias, vendo a paternidade brilhar na timeline dos outros.

Também penso nos filhos de alcoólatras que estão ressentidos, que não querem falar com o pai, que têm vergonha de falar dele ou que passaram o dia vendo o pai se derreter em álcool e escapar da mesa, da conversa, do amor. A bebida destroça relações.

Eu mesma reneguei meu pai por muitos anos, muito antes de saber que também viria a me apresentar como alcoólatra. Quando eu era criança, minha casa era predominantemente um ringue de luta entre minha mãe e ele. Como já escrevi antes, conciliar compromissos sociais e afetivos com o álcool, quando se tem a doença ativa, é impossível.

Desnecessário dizer que eu sentia muita falta da figura paterna na infância, período em que ele mais bebeu. Ele era muito ausente. Saía cedo para trabalhar e demorava muito para voltar. Fomos algumas vezes atrás dele para trazê-lo de volta para casa. Minha mãe, meus irmãos e eu. Lembro de uma ou outra vez que tiramos meu pai do bar. Nós, já de pijama. Era difícil estar naquela posição. Difícil para ele e para nós. Eu encontrava outra pessoa.

Vida de Alcoólatra
'Escrevo numa noite de domingo. Os domingos eram particularmente horríveis' - Catarina Pignato

De manhã, com cheiro de café, meu pai me fazia carinho e me levava para a escola. À noite seu olhar estava perdido e eu era invisível. É muito triste escrever isso porque hoje eu sei o quanto ele é um homem bom e amável. O quanto ele tentou dar o seu melhor para a minha vida. Mas tinha a bebida. Tinha a cervejinha, o uisquinho, a pinguinha. Tudo sempre no diminutivo para camuflar os enormes equívocos e silêncios que permearam nossa relação. Hoje me descubro, além de alcoólatra, uma codependente. Ainda bem que posso contar com o Al-Anon, grupo de ajuda para familiares e amigos de alcoólatras.

Escrevo numa noite de domingo. Os domingos eram particularmente horríveis. Minha casa era invadida por gritos, xingamentos e choros. Muitos choros. Meus irmãos aumentavam o volume da televisão e tentavam nos distrair. Mas o som não era alto o bastante. Eu assistia jogos de futebol e programas sobre o esporte ao som da guerra doméstica. Tinha vontade de chorar e muitas vezes chorava.

A bebida havia ocupado a cabeça do meu pai e sequestrara a calma da minha mãe. Domingo começava bem e terminava um tsunami. Sem exceção. Hoje meu pensamento se volta para esses pais que ainda não conseguiram parar, para esses filhos que têm certeza de que nunca mais vão falar com seus pais. Que por mais um dia foram devastados, pais e filhos, pela bebida. Já estive nesse lugar, é péssimo. A vocês, todo meu amor e solidariedade. O alcoolismo não perdoa e ele muitas vezes está camuflado. Fingimos uma normalidade que não existe.

Demorei para entender que ninguém tem culpa de ser doente. E hoje me perdoo, e acima de tudo perdoo meu pai por tudo que NÃO passamos juntos. Porque quando o álcool está no comando, não há espaço para beijos, bilhetes de amor, ensinamentos, agradecimentos, mesa posta, parque, diálogo. Quando a doença grita, o amor silencia e perde espaço. E com muita frequência parece que nunca vai ter amor nessa relação.

Passei anos bebendo e dizendo que fazia isso para provocar meu pai, sem me dar conta de que eu já estava bem adoecida. Era uma bola de neve. Eu tinha raiva da falta de amor que recebia e bebia para mostrar todas as bobagens que eu poderia fazer, interferindo na vida dele. Meu pai parou de beber antes de mim, muito antes, e teve de aguentar muito sofrimento, se culpando por ver a filha em situações caóticas. Houve muito estrago, muita guerra, e eu precisei de tudo isso para hoje escrever este texto em paz.

Hoje meu pai veio à minha casa, tomamos café da manhã juntos e trocamos muitos sorrisos gostosos. Muitos abraços que tardaram a chegar mas que hoje estão cheios de carinho. Por ironia do destino, ele finalmente parou de beber por minha causa. E eu parei de beber porque não aguentei mais lutar contra a doença.

A você, que teve um Dia dos Pais ruim, que sente vergonha de tudo que já fez para seus filhos, posso te dizer que a culpa não é sua. E que existe, sim, uma solução. Ela não está na bebida, por mais que seja difícil de entender. Digo, depois de muuuuita recuperação, que meu pai é gigante, dono de um dos maiores corações que já conheci. Hoje meu pai é calmaria.

Depois do café, quando ele estava indo embora, eu disse: "Não esquece de marcar o dia que vamos viajar". Vamos viajar, ele e eu, olha só. Só nós dois. Não para recuperar o tempo perdido, porque isso é bobagem. Mas para celebrar a relação que construímos depois de muita barra pesada. E é isso, às vezes as coisas são do jeito que conseguimos. Mas há mudança, há vida. Cuide de você, assim como eu cuido de mim e do meu pai. É o que eu desejo neste Dia dos Pais que eu sei que não deve ter sido fácil. Vai passar.

As feridas ficam, mas o tempo vai construindo muita coisa boa em cima delas. Há uma solução para o alcoolismo. Escute mais seu coração.

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