Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu maternidade

O alcoolismo me impediu de ser mãe

Precisei ser muito cuidada para simplesmente viver

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É difícil falar em maternidade sendo uma mulher alcoólatra. Hoje, com 40 anos, me descubro uma pessoa ainda muito insegura e dependente de uma aprovação, de uma certeza que no fundo eu sei que nunca vou encontrar. Talvez me sinta a filha eterna, e ser mãe só tenha sentido em outra pessoa.

Eu não sou mãe. Se com 40 anos as chances de engravidar já são pequenas, a falta de uma estrutura afetiva e emocional reforça a certeza de que falhei nesse quesito. Sim, apesar de todos os avanços e reflexões sobre mulheres sem filho, ainda sinto o peso de ter falhado. Talvez não tanto por mim, mas por pessoas que me rodeiam, pela sociedade… Não não não, é por mim mesma que me sinto fracassada. A raiva de ter ficado completamente alucinada no período mais provável de se pensar em ter filhos é enorme. É um puta peso que carrego e tento tirar das costas diariamente.

Iustração mostra uma garrafa deitada e, dentro dela, uma taça
Eu não sou mãe. A falta de uma estrutura afetiva e emocional reforça a certeza de que falhei nesse quesito - Catarina Pignato

Ficar pensando no tempo perdido é praticamente ir jogando o tempo da vida atual na lata do lixo. Não vivo o hoje, não me conformo com o ontem, não aceito o amanhã. Uma das frases-chave da recuperação de um doente alcoólatra, inclusive, está na literatura especializada. É "esqueça os prejuízos". E com isso está implícito que não dá pra ficar remoendo o tempo todo sobre o que não foi —o que deixou de ser— e se eu tivesse feito assim. E se eu não largasse aquele cara que por tantos anos eu namorei e com quem fiz planos e que certamente seria o pai dos meus filhos. Não dá.

Pensar no "e se" é um caminho doloroso. Gosto de uma tirinha do Yorhán Araújo em que um personagem fala para o outro: "fico imaginando como seria a minha vida se tivesse feito outras escolhas", no que o outro responde imediatamente: "você estaria pensando como seria a sua vida se tivesse feito outras escolhas."

Aqui nesse relato fala uma mulher de classe média alta com todos os privilégios que pôde ter e com um apoio familiar incondicional. Cruzo com muitas mães alcoólatras, em recuperação ou não, e as histórias não são fáceis. São confusas, são doídas. Nunca esqueço ter ouvido uma mulher que disse ter perdido os primeiros anos do crescimento de sua filha, que ela não tinha a mínima ideia de como a criança começou a andar e da vergonha que passa toda vez que precisa voltar a lembrar desse período da vida. Putz, nesse dia eu chorei, chorei, chorei de raiva e de ódio de mim. E, claro, da história da moça.

Porque é isso: não dá pra gente comparar as dores, mas ao mesmo tempo, em terapia grupal, como é o caso de alcoólicos anônimos, eu vou levando os tapas e entendendo que cada um tem uma história e acolho mais as minhas dores por meio das dores de outras. Claro que minha cabeça que não para de caraminholar, só pensa no que perdi ao não ter filho, no que perdi ao não constituir uma família, mas muitas vezes me deparo com mulheres que me contam histórias tristíssimas e então me forço a fazer um exercício de também imaginar se eu tivesse tido filho completamenteforadacaixinha.

Eu bebia todos os dias, o tempo que desce. Já com vinte e poucos anos, praticamente não tinha uma relação sexual em que eu conseguisse sentir qualquer tipo de prazer. Porque evidentemente, quando estava começando a flertar, já estava bêbada. Quando estava indo pra cama não tinha nem ideia de onde estava. O sexo ficou nos apagamentos. Juro que conto nos dedos de uma só mão quantas relações sexuais eu tive consciente. Sim, porque uma garota que começou a beber com treze anos para enfrentar a timidez e o mundo todo não tem chance para sentimento, para descobertas, para crescimento. É tudo à base de anestesia.

Hoje em recuperação, ou seja, sem beber, eu sei o que é enfrentar uma frustração, sei o que é o desejo pulsar por alguma coisa ou alguém, sei exatamente quando estou entrando numa roubada. E hoje eu não caio em roubada, ou se percebo alguma, chamo uma amiga, de preferência companheira de AA, que possa entender o que está se passando comigo para que abra meus olhos e alivie minha dor. Sozinha eu não consigo. Sozinha eu consegui beber, consegui conversar com as mais diversas pessoas, consegui provocar risos e gargalhadas sendo a companhia "mais divertida do lugar", até não ser mais.

Mas sozinha não faço uma família, não faço um filho. Precisei ser muito cuidada para simplesmente viver. E hoje, só zerando minha vida a cada dia que nasço, vou construindo uma nova ordem de tudo. Todo dia eu levanto e penso: bem-vinda à nova vida, Alice, é mais um dia em que você não vai beber, aconteça o que acontecer.

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