Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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A história de uma mulher alcoólatra foi parar na capa do jornal

Dedico as colunas às pessoas que sofrem com o alcoolismo e que ainda não conseguiram encontrar uma vida tranquila

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A minha história foi parar na capa do jornal! Estou radiante desde aquele dia em que meu texto sobre Setembro Amarelo saiu com destaque na primeira página. Comentei com uma amiga que estou me sentindo personagem daqueles filmes de sessão da tarde em que a menina que é-a-esquisita-da-turma finalmente é notada!! Brincadeiras à parte, não é pouca coisa a história de uma mulher alcoólatra que muitas vezes tentou tirar a própria vida ocupar um espaço tão importante.

Eu sou uma sobrevivente, mas quase fui embora, foi por pouco. O que passei foi difícil à beça e hoje tenho a certeza de que o alcoolismo é uma doença tão grave quanto qualquer outra. Depois de muitos anos levando muitos sustos e acordando no hospital, eu finalmente renasci e aos poucos tudo foi fazendo sentido.

O dia em que "eu" fui capa começou lá pelas sete da manhã, com meu irmão mandando mensagem no grupo dos irmãos: "capa, hein?", com vários emojis de palminhas. Eu ainda estava acordando quando levei o choque daquela mensagem com uma foto da página do jornal. Era eu. Estava finalmente conseguindo ressignificar minha dor e ainda servir de alerta para os outros.

É muito, não é pouco. Cada coluna, impressa ou online, me faz aceitar ainda mais minha condição. Algumas pessoas me escrevem dizendo que não são alcoólatras mas reconhecem ter questões com o álcool (aliás, agradeço todas as mensagens de incentivo, carinho e companheirismo que me mandam). Na coluna sobre um acidente de carro que sofri, citei o Paulinho, um amigo, identificando-o como um abusador de álcool. Bom, isso é o que eu acho, queria que ficasse claro. Não sou especialista na doença, não passo de uma alcoólatra em recuperação com muita experiência em abuso de álcool.

'Capa, eim', mandou meu irmão por mensagem no grupo da família - Lalo de Almeida/Folhapress

Também recebi mensagens de muitos que dizem se identificar com alguns aspectos dos meus relatos, mas que não chegaram a fazer o que fiz, não bebem todo dia, não perderam o controle. Eu sinceramente demorei muito tempo para admitir a doença e recomeçar minha vida. Não foi desde sempre que eu bebia de manhã, escondia bebida, perdia minha dignidade, passava vexame. O começo foi bom! Eu ficava experimentando e me forçando a virar aqueles líquidos que prometiam me dar tranquilidade. O alcoolismo, pelo que tenho observado nesses tempos sóbria, vai se instalando e crescendo de uma forma que uma hora não tem mais jeito.

Nas salas de AA, todo dia aparece gente nova que nem sempre volta depois de ouvir os depoimentos. Mas dali a um tempo essas pessoas retornam num estado bem pior de como estavam. Infelizmente isso é comum. Chegam mais por um ultimato de familiares, empregadores etc., mas não têm vontade de deixar a bebida. Talvez naquela primeira visita a pessoa ainda tenha o controle da situação.

Eu não tive essa chance de estar pela primeira vez numa sala de AA sem ainda ter perdido tanta coisa. Fui muito teimosa. Podia suportar a ideia de tolerar qualquer dor de ressaca, da alma, mas não pensava em parar de beber. JA-MAIS. Quem encontra um caminho no álcool, como eu, não quer abrir mão dele. Apesar do relacionamento ser extremamente tóxico, eu me julgava capaz de aguentar.

Não tenho a menor dúvida de que a melhor coisa que aconteceu comigo foi ter definitivamente procurado ajuda no lugar certo e parado de beber. Hoje faço coisas que jamais faria no meu passado alcoólico. Tenho um amor por mim que só cresce desde que entrei no AA. É bonita demais, aliás, a relacão entre os AA's em recuperação. Cheguei sem alma, sem cor e sem amor. Meus colegas de sala disseram: a gente te ama enquanto você não conseguir se amar. Lembro disso com lágrimas nos olhos. Nunca tive um amor assim. São pessoas das mais diversas profissões, que não querem saber absolutamente nada da minha vida, só desejam meu bem-estar.

Seria legal ter conversado com a Alice de tempos atrás. Apesar da aflição que sinto todas as vezes que de alguma forma entro em contato com ela. Seja através de emails, de encontros inesperados com pessoas do passado sombrio ou mesmo observando a Alice de outrora no meu vizinho de mesa que agora está almoçando no mesmo restaurante que eu. Já comi um bolinho de bacalhau e estou no meu bife à milanesa com salada, enquanto ele está na terceira cerveja, depois de ter começado com uma caipirinha. Olho pra ele e lembro de mim. Vejo a solidão que a bebida deflagra. Enquanto termino essa coluna pensando na sobremesa e no café, ele provavelmente está pensando na quarta cerveja que vai pedir. Esperando o tempo passar em companhia do álcool. A parceria mais triste que eu pude experimentar.

São por essas pessoas que vibro ao ver minha história na primeira página do jornal. Um dia meus textos podem ir parar no colo desse rapaz e quem sabe ele poderá entender que a vida sem o álcool é bonita. Na verdade, para mim, viver só pode ser assim. Antes era SOBREVIVER. Hoje é um festejar de pequenas conquistas todos-os-dias.

Meu irmão, aquele que me deu parabéns lá em cima, é o mesmo que há vinte anos mais ou menos passou o réveillon comigo bebendo cerveja sem álcool. VINTE ANOS e eu já era um problema para todos. E hoje sou motivo de orgulho para eles. É essa minha alegria hoje.

Gostaria por fim de dizer que dedico todas essas colunas às pessoas que sofrem com a doença do alcoolismo e que ainda não conseguiram encontrar uma vida tranquila. Quero dizer a eles/as que estamos, sim, sendo notados. Estamos entre as notícias mais importantes do dia. Acreditem na mudança. Eu sou prova VIVA!

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