Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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Meu cachorro e a ideia de perdê-lo foram o começo do meu resgate para a vida

Quando saí da última internação por alcoolismo, ele estava do lado de fora da clínica, me esperando com minha irmã

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Um dos grandes responsáveis pela minha recuperação foi e tem sido meu cachorro. Eu o adotei um ano antes de entrar no AA (como já disse por aqui, foi esse método que funcionou para mim). Isso quer dizer que ele acompanhou o período mais crítico do meu alcoolismo até então.

Naquele ano fui internada três vezes e tive que deixá-lo aos cuidados de terceiros. Quando estava prestes a sair definitivamente da clínica, meu médico entrou no quarto e disse: "E aí, Alice? Como está?". Eu não tinha força nem para esboçar um sorriso, e só falei, baixinho: "Tenho saudade do meu cachorro, quero muito encontrar ele". (Fiquei um período entrando e saindo da clínica: tinha-alta-bebia-voltava, tinha-alta-bebia-voltava). O médico, que havia me acompanhado nos momentos mais difíceis, não pensou duas vezes ao responder: "Precisa ver se dessa vez ele vai estar te esperando."

Sim, foi cruel, eu tive muita raiva. Mas agora, lembrando daquela manhã, devo confessar que, se eu estivesse na pele dele, talvez fizesse igual. Nada mais me abalava e ele teve que jogar com a arma que lhe restava: meu-cachorro.

cachorro
'Foi só eu aparecer e ele correu cheio de alegria, abanando o rabo loucamente e pulando em mim' - Adobe Stock

Não sei se vocês já repararam no olhar de um cão quando ele percebe que o dono está indo embora. Tem um ar tristíssimo de não-me-abandone-por-favor. Ainda por cima o meu, que acredito ter sido maltratado quando pequeno e estava sempre muito assustado. Se apegou a mim de um jeito… Vivia ao meu lado, embaixo da minha cama… Se eu levantava, ele ia atrás: para ir ao banheiro, para fumar um cigarro, para sentar no bar da esquina de casa. Ele estava sempre ali. No fim éramos eu, ele e a bebida. Minha irmã tinha dado um ultimato: Chegaaaaa, agora é com você. Olha no espelho e vê se quer mudar ou se quer mesmo se-atirar-da-janela-e-acabar-de-vez-com-o-sossego-de-todos.

Trancafiada naquela clínica, me veio o olhar do meu cachorro, que poderia, sim, já ter sido destinado a outros. Minha cabeça começou a doer demais e eram apenas nove horas. Já tinha tomado café da manhã com os demais internos e agora não podia mais ficar no quarto. Tinha que ir para a sala e conviver com os outros. Que merda! O quarto era um lugar de paz. E meu cachorro, onde ele estaria? O que será que estaria pensando de mim?

A ideia de perdê-lo foi o começo do meu resgate para a vida. Era isso, queria poder estar ao lado dele, não deixá-lo sozinho. Se já não estivesse na minha casa, eu correria para resgatá-lo, tipo uma missão. Tem uma hora que não tem mais o que fazer com uma alcoólatra como eu e as pessoas ao redor vão tentando todas as cartadas. Meu cachorro tinha sido um belo golpe.

A última grande bebedeira, antes de entrar no período da clínica, começou exatamente assim: num domingo de manhã em que eu estava esperando o tempo passar. Já tinha fumado muitos cigarros e a angústia só crescia. Estava sem beber havia uns sete meses (sim, já havia tentando parar muitas vezes), mas aquele dia tudo parecia estar no limite, prestes a estourar. Insuportável. Não tinha para quem ligar, não tinha o que fazer. Num impulso fui até o bar da esquina. Ainda mandei mensagem para a Tereza, aquela amiga que viajou comigo para o Rio, e disse assim: ME-SALVA. Mas aquele era só um aviso, eu já tinha decidido. Ela nunca foi de ficar conferindo o celular o tempo todo, e sempre demorava para responder. Não era, portanto, um pedido de ajuda, e sim o anúncio da minha desistência.

Meu cachorro tinha ido comigo. E permaneceu comigo conforme eu ia me afundando e apagando, em diversos lugares. Não sei ao certo o momento em que me separei dele. Quando cheguei na clínica, na quinta-feira, não lembrava nada do que tinha acontecido, não sabia como nem onde ele tinha ficado. Cachorros são seres especiais. Distribuem amor sem exigir nada em troca. Mesmo se eu esquecesse de comprar ração, mesmo se não conseguisse levantar para passear com ele, ele seguia fiel ao meu lado, com olhar apaixonado. Quando eu chorava, muitas vezes sozinha em casa, bebendo com raiva porque não queria beber mas precisava, ele subia no meu colo e lambia meu rosto, me puxava para brincar. Foi a chave para eu começar a melhorar.

Quando saí dessa última internação ele estava do lado de fora, me esperando ao lado da minha irmã. Foi só eu aparecer e ele correu cheio de alegria, abanando o rabo loucamente e pulando em mim. Foi um momento único e muito importante e emocionante, minha irmã e eu choramos. Nesse momento eu senti era aquela era minha última chance de recuperar o amor pela vida: através dos olhos dele. Sua companhia me sustentou nos piores momentos do meu tratamento.

Bem no início, eu só conseguia sair de casa porque sabia que ele precisava de mim. O amor só cresceu. Ele tinha muita energia e me puxava sempre para passear mais. E assim ele também foi me levando a falar com as pessoas que também tinham cachorro, foi me ressocializando. Me dando assunto para conversar com os outros, me distraindo da minha dor para vê-lo correndo atrás de qualquer bolinha e esperando eu interagir. Hoje ele está aqui ao meu lado enquanto escrevo. Já não tem mais tanta energia, mas segue dormindo embaixo da minha cama, exatamente do lado em que deito.

Penso que essas pequenas coisas, vindas de um animal que não julga nada, podem ser um grande remédio para essa doença. Pelo menos foi pra mim. Na sala do AA, vejo muitos companheiros com cachorros, gatos e outros bichinhos de estimação. Uma relação de amor incondicional que serve de alicerce para quem não consegue diálogo com quase mais nada.

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