Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

Alcoolismo não tira férias, nem na Cidade Maravilhosa

Temi não dominar o medo e transformar a promessa de felicidade no Rio em mais uma estadia no inferno

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Depois de quase dois anos de recuperação, fui passar uma temporada no Rio de Janeiro com a minha melhor amiga. O Rio sempre foi um lugar mágico para mim, a cidade em que muitas primeiras coisas me aconteceram —já me perdi no Carnaval, já me apaixonei muito, já vivi momentos cinematográficos e tantos outros catastróficos (talvez os piores da minha doença). Mas dessa vez seria diferente.

Tereza e eu combinamos passar umas feriazinhas na Cidade Maravilhosa. Ficaríamos no apartamento de um amigo do irmão dela que tinha ido viajar. Fui antes, sozinha, Tereza chegaria dois dias depois. Saí de São Paulo com uma incrível sensação de liberdade. Um grande companheiro carioca alcoólatra me alertou: olha, Alice, se apertar, tem o grupo lá. Eu desdenhei. Grupo? Nas minhas férias? Imagina, não seria preciso. Dois anos sem nada de álcool na boca, não tinha mais perigo, eu pensava.

Desembarquei e fui direto para o apartamento que estava à minha espera. Cheguei à portaria depois de saborear a paisagem, os clássicos cenários naturais misturados com o clima sempre gostoso. O dia estava lindo, o céu azul e o sol me faziam ter certeza de que EU ERA A PESSOA MAIS FELIZ DO MUNDO! Uau! Quem poderia me tirar aquela sensação tão boa?

Abri a porta do apartamento do Antônio com uma alegria imensa. O prédio ficava na Glória e a vista para o Aterro do Flamengo era de tirar o fôlego. (Sei que parece um clichê, mas de fato a gente fica com a respiração suspensa!). Admirei aquele cenário liiindo-perfeito suspirando de felicidade e quando virei para trancar a porta me deparei com outra coisa tão desconcertante quanto aquela paisagem: o bar da casa! Nesse momento, minha sensação antes tão boa se transformou numa coisa muuuuito esquisita. Senti o calor daqueles destilados que em tantos momentos já haviam descido pela minha garganta. Aquelas muitas garrafas me olhavam e me chamavam: E aí? Vamos relaxar? PÂNICO. Não saí do lugar. As pessoas andando de bicicleta no Aterro do Flamengo, sorridentes, foram apagadas pelo escuro de outros tempos.

Imagem de um bar caseiro com garrafas para o blog vida de alcoólatra
'Aquelas muitas garrafas me olhavam e me chamavam: E aí? Vamos relaxar?' - Mariana Agunzi/Folhapress

O álcool desfilava diante dos meus olhos, transparente ou colorido, acobreado, azul-claro, vermelho sangue. Tantas cores naquele bar tão inofensivo —uma mesa com bebidas e a paralisação de toda e qualquer sensação de bem-estar. Acredito que fiquei uns cinco minutos parada olhando as garrafas, e então comecei a sentir um medo pavoroso e uma vontade de chorar. O silêncio daquelas garrafas me encarando era apavorante. Apesar da sensação tenebrosa que tinha tomado conta de mim, entrei no apartamento e fingi naturalidade. Pronto, lá ia eu guardar o queijo e as águas que tinha comprado no caminho. Abri a geladeira: ela estava cheia de cerveja. Poxa, como o Antônio tinha feito aquilo comigo?

Olha o tamanho da minha doença. Antônio tinha preparado o apartamento para nós duas, tinha deixado flores na entrada, roupa de cama limpa, toalhas e tudo mais. E eu só sentia raiva e pensava, egoísta, que ele bem que podia ter tirado aquelas garrafas para eu não ficar mal. Será que a Tereza não tinha contado pra ele? Não me ocorreu que ele talvez desconhecesse minha condição... Bom, esse tipo de pensamento era bastante frequente. Como as pessoas ousavam beber na minha frente? Como elas continuavam a ME provocar? Demorei para parar de me assombrar com esse tipo de pensamento egoísta, mas vez ou outra ele ainda aparece.

Enfim, temi não dominar o medo de transformar aquela promessa de felicidade em mais uma estadia no inferno. Eu já havia tentado parar de beber inúmeras vezes antes de ingressar em uma sala de AA, e tinha sempre uma recaída. Mas agora a grande diferença eram as pessoas, a força do grupo e a segurança de que eu nunca mais me sentiria sozinha. Lembrei do Oscar, o carioca que tinha me falado da sala e fui ver o WhatsApp dele com as informações. Uma reunião começaria em trinta minutos e eu estava a uma distância de dez minutos a pé! Nem desfiz a mala, nem fui para praia, nem fui pedalar, nada. Corri cega para o grupo. Chorando e com o coração disparado ao longo dos quinze minutos que me separavam dos meus. Fui recebida com sorrisos e abraços, me senti cruzando a linha de chegada de uma maratona e finalmente podendo descansar.

Sim, era a linha de chegada da paz. A comparação com uma maratona não é exagero. A luta contra o alcoolismo é isso, é ter que desviar das armadilhas que estão em todo lugar. Desse dia em diante, nunca mais tirei folga da minha recuperação. Estar em férias é ótimo, mas minha doença pede cuidado constante. Não dava para achar que eu ia viajar para o Rio sem precisar enfrentar meu alcoolismo. Aprendi.

Passei os dois dias sem a Tereza indo a quatro reuniões de AA. Exagero? Não, nunca, jamais. Quatro reuniões correspondem a oito horas de sala intercalados por muitas conversas boas e encontros divertidos. Meu dia rende muito se não bebo e meu barato estava ali. O que eu não teria feito com oito horas de alcoolismo ativo no Rio a quarenta graus?

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