Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
Descrição de chapéu Todas

Quando o reencontrei, pensei: eu sofri tanto por isso?

Naquela carência de um ano de sobriedade, achei que era o cara que chegaria para completar minha felicidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Eu já o conhecia havia um bom tempo. Frequentávamos o mesmo bar. Não éramos próximos mas fazíamos parte da mesma turma. O lugar era como eu gostava, aqueles botecos bem simples com cadeiras na calçada. Eu passava tanto tempo lá que sabia o nome de todos os garçons, o que tornava o ambiente ainda mais acolhedor. Podia até ter fila para entrar quando eu chegava, mas eu sempre conseguia um cantinho na mesa dos amigos.

Por volta das sete, assim que eu entrava, já começava a beber (às vezes já tinha comprado uma latinha no caminho). Ele sempre aparecia mais tarde, umas dez. Ou seja: uma Alice e três horas de álcool depois. Eu sou tímida, a bebida ajudava a amenizar um pouco. Percebia que ele me olhava de um jeito diferente, parecia que fazia uma graça de longe, às vezes gesticulava no ar como se estivesse brindando comigo olhando nos meus olhos. Eu correspondia mas já estava aérea, em plena bebedeira.

Vida de Alcoólatra
Ilustração de Catarina Pignato para o blog Vida de Alcoólatra - Catarina Pignato

Ele era aquele coringa que sempre estava me cercando. De vez em quando tínhamos uma interação. Eu nunca fui boa de relacionamento amoroso. E depois que parei de beber a timidez voltou com tudo e eu passei a não frequentar tantos bares, festas, o que dificulta um pouco encontrar alguém. Esse lance da paquera que é tão gostoso pra muita gente não é nada fácil para mim. Eu não aguento esse tempo da espera. E isso faz parte do alcoolismo: a ansiedade de não saber aguardar. Então não sei jogar, não sei flertar e sempre perco a paciência e erro o tom. Quando bebia, meu relacionamento era com álcool e mais ninguém, era com ele que eu flertava.

Foram noites e madrugadas nesse bar. Muitas vezes eu queria ficar com ele, mas sempre acabava beijando outros caras, ou mesmo ficava mortinha de um jeito que ninguém me queria por perto. Bêbada de cair, sem condições pra nada. Simplesmente me entregava. Eu me tornava uma companhia pesada, chata. Ficava sem conseguir falar direito, repetia as mesmas histórias, dizia que amava todo mundo e chorava. Os mais próximos falavam diretamente para mim sobre o meu estado, os conhecidos apenas me suportavam, mas logo davam desculpas para me excluir da mesa ou do papo. Me dá muita vergonha lembrar, mas isso é parte da história que eu consegui traçar dentro da minha doença. É preciso humildade e aceitação para encarar essas lembranças.

Bom, minha doença avançou, comecei a não beber mais em bares, só em casa. Beber em casa, escondida de todos, me transformou em uma "coisa" suja e abandonada por mim mesma. Era difícil me cuidar, levantar, fazer coisas … Com isso vieram as internações, o fundo do poço e por fim o começo da recuperação. O que eu mais ouvia dos que já estavam havia um tempo sem beber era para me manter longe dos lugares que eu frequentava na ativa e evitar relacionamentos amorosos por pelo menos um ano. A segunda parte do conselho não seria difícil, eu me ferrei tanto que não conseguia interagir direito nem com a minha família, imagina paquerar? Então fui aos poucos voltando a ter condições de conversar e encontrar algumas pessoas.

Quando estava sóbria havia um ano, consegui um trabalho na minha área. Aquilo me encheu de esperança. E, junto com o trabalho, vieram os contatos daquela época do bar, porque quase todos éramos da mesma área. E precisei falar com ele. Marcamos um café para acertar detalhes de um projeto. Quando entrei na padaria e vi aquele homem que sempre mexeu tanto comigo, minhas pernas tremeram. Pensei que aquela reunião ia ser um desastre, mas não, foi ótima. Expus muito bem as minhas ideias e ainda ganhei elogios —que eu estava mais bonita, mais segura e muito mais alegre.

Bom, fazia sentido pra mim. Assim que saí do café, recebi uma mensagem dele dizendo que sentia uma coisa forte por mim, e que não era de hoje. Eu vibrei, estava viva novamente até pra isso! Mandei uma mensagem correspondendo, mas ainda estávamos trabalhando no mesmo projeto, então nos controlamos. Mas não muito. Duas semanas depois nos beijamos! UAU, depois de tanto tempo na seca, eu regressava no melhor estilo: sem anestesia, com amor e com alguém que eu curtia de verdade.

Foi muito bom. Ficamos juntos uma tarde toda até que uma hora ele disse: "Alice, eu estou casado." Putz…. meu coração disparou, eu tive vontade de chorar, mas segurei. Apenas me desvencilhei, peguei minhas coisas e fui pra casa. Saí a pé de onde estávamos e apressei o passo. Aquela dor da frustração bateu com tudo e eu não sabia o que fazer. Comecei a ter medo, muito medo. A última vez que tinha sentido uma coisa parecida eu tinha ido beber. Mas agora eu já estava um pouco forte com um ano de sobriedade pra conseguir evitar o primeiro gole. Corri para uma reunião. E lá, com meus amigos, desabei.

Então me explicaram o porquê do intervalo de tempo sem relação afetiva. Caso o amor não desse certo, eu iria fatalmente acessar um lugar muito ruim, triste. Um lugar de rejeição que é quase o pior sentimento para uma alcoólatra. E eles tinham razão. Depois daquele encontro, passei semanas me escondendo na escada de incêndio do prédio onde eu trabalhava pra poder chorar. Chorei muito, achei que não fosse aguentar tanta dor. Mas seria por ele? Não, claro. Hoje vejo que não. Eu ainda estava muito bagunçada emocionalmente e qualquer desatenção de fato viraria um tsunami.

Reencontrei ele recentemente. Se separou! Mas está feio, bobo e bebeu três cervejas enquanto eu ficava muito bem com minha água com gás. Só reclamou da vida. E então olhei para aquela cena e pensei, caramba, eu sofri tanto por isso? Pois é, mas faz parte, claro que ele é um ótimo bom papo, um cara sedutor e inteligente. Por isso mesmo, naquela carência de um ano de sobriedade, achei que era o cara que chegaria para completar minha felicidade. Mas não foi, e passou. Tudo passou. O bar não existe mais e nós dois tampouco temos qualquer ligação.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.