Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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'Mulher precisa ter compostura', dizia minha avó quando eu bebia

Dona T. era uma mulher dos anos 1920, mas não deixava de ter razão; só que não era a roupa que iria me definir, era o álcool

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Um dos momentos mais delicados na minha recuperação foi a morte da minha avó. Ela foi meu chão durante muito tempo. Convivi 39 anos da minha vida com ela —quando adulta, quase sempre bêbada. Nunca conversamos abertamente sobre a gravidade a que chegou meu problema com o alcoolismo, mas tenho certeza de que, no fundo, ela sabia. Impossível não notar minhas ausências (quando eu ficava internada), minhas tristezas (quando eu recaía), meu cheiro (quando eu bebia sem parar) e minha solidão absurda (quando cheguei no fundo do poço).

Ela era uma figura muito importante na família e tínhamos uma conexão muito forte. A ponto de quase todas as vezes que eu me metia numa grande encrenca por causa do álcool, o telefone tocar e ela dizer: "Alice, tava pensando em você!". Era de arrepiar. Morei com ela em algum momento, quando não tinha mais para onde ir.

Era tanta parceria que se acontecesse alguma coisa com ela, fosse o câncer que ela teve já aos 90, fosse uma pneumonia, os meus familiares tentavam esconder de mim com medo da minha reação. Temiam que eu fizesse alguma besteira. Por muitas vezes, de fato era nela que eu encontrava alguma força para acreditar em mim.

Dona T. era doce e dura na mesma medida. Foram inúmeras as vezes que ela me disse: "Homem bêbado é uma desgraça, mulher então, é inadmissível, Alice". Ela gostava de bebida, mas sempre foi de beber pouco. Até os últimos anos de vida, ela não desperdiçava momentos para tomar um chope. Mas era isso. Um chope e só. Eu ficava ali, olhando… Será que ela nunca perdeu as estribeiras?

Mãos de mulher idosa com sintoma de tremor alcançando um copo de água na mesa de madeira. As causas do tremor nas mãos incluem doença de Parkinson, acidente vascular cerebral ou lesão cerebral. Distúrbio neurológico de saúde mental.
Minha avó sofreu muito vendo meu pai beber e causar inúmeros desconfortos para a família, e com certeza se tornou uma codependente - Orawan/Adobe Stock

Minha avó sofreu muito vendo meu pai beber e causar inúmeros desconfortos para a família, e com certeza se tornou uma codependente. Sofreu um trauma e tenho certeza de que sentia muito medo quando percebia a frequência com que eu estava ficando bêbada. "Senta direito, Alice. Mulher precisa ter compostura."

Por causa dela e para minha própria segurança, passei a não usar saia, nem nenhuma roupa que pudesse me expor quando bebia. Ou seja, a bebida começou a mandar no modo como eu me vestia. "Tá parecendo um homem", ela reclamava ao me ver de calça e camiseta larga. Não sei dizer tecnicamente a respeito do alcoolismo feminino, só sei que o álcool foi me tirando toda e qualquer vaidade. Quando eu entrava no meu looping alcoólico, ficava dias sem tomar banho e não dormia direito. E aí passava o dia praticamente desmaida pelos cantos.

Um dia meu irmão mais velho tentou me animar e me levou para trabalhar com ele. Estava um calor descomunal e eu lembro que ele precisou desligar o ar-condicionado para abrir as janelas. Segundo ele, meu cheiro estava insuportável. Ele ficou puto e me deu muitos esporros, disse que eu precisava virar gente de novo. Claro que eu chorei muito, primeiro porque eu não percebia mais nada. Eu não me olhava no espelho, eu não entrava no chuveiro. Eu só me entorpecia.

Uma hora ele sentiu que tinha pegado pesado demais e começou a brincar dizendo que iria comprar um esmalte na farmácia para mim. Até fez piada com o nome da marca. Nós dois rimos, ele tentou me chacoalhar, me tirar do torpor. Era difícil. Eu já estava no limbo do alcoolismo. Naquele lugar que a realidade já não é mais a mesma e os sentimentos estão misturados.

Sempre pegou demais essa questão da vaidade. Eu nunca me interessei muito em me arrumar, queria ser prática. Achava um saco as festas marcadas para as nove, dez da noite. O que eu faria entre o final do expediente e o começo da festa? Se você fosse direita, dizia minha avó, iria se arrumar para a festa e não ficar no bar bebendo. Me dava conselhos quando eu ligava para dar notícias do meu paradeiro. (Teve um tempo que eu tinha um certo juízo.)

Claro que muita coisa mudou. Esse diálogo ocorreu entre uma mulher nascida na década de 1920 e outra na década de 1980. Dona T. não deixava de ter razão em relação a mim, mas não era a roupa que iria me definir mais ou menos interessante. A questão era o álcool mesmo. Enquanto finalizava esta coluna, fui dar uma olhada no Instagram e vi uma polêmica sobre mulher beber cerveja, se é elegante ou não.

Se é elegante? Isso é uma grande bobagem, fruto do machismo que ainda está entranhado na sociedade. A mulher pode fazer o que ela quiser, e se sentir à vontade para fazer o que bem entender. Quem não pode sou eu, mulher alcoólatra. Não posso beber, o resto posso quase tudo. Hoje não tem um dia em que eu não passe um creme. Olha só que evolução. Eu faço esporte todo dia de manhã e na sequência tomo banho. Parece pouco? Se você é mulher alcoólatra, sabe que não.

Eu observo cada vez mais mulheres procurando ajuda. Havia muita bebida nas festas que eu frequentava na ativa. O curioso é que se tivesse vexame de mulher alcoolizada, sempre era mais tenso. Os adjetivos começavam a aparecer, daqueles mais maldosos. Homem é bêbado, mulher é vagabunda, oferecida, doida, louca… Pelo menos eu fui tudo isso.

Minha avó presenciou dois anos em que me cuidei, dois anos sem beber. Parece que ela esperou isso para ir embora tranquila. Ela está comigo em pensamento todos os dias, suas palavras ainda reverberam muito. Mas ela sabe que eu estou bem. E passar pela morte dela sem beber foi maravilhoso. Pude me despedir e estar ao seu lado até os últimos minutos, exercendo enfim a função de uma neta que conseguiu retribuir o tanto que ela me ajudou.

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