Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.

No Carnaval, o sorriso nas fotos escondia uma batalha interna

Lembranças de minha penúltima recaída me trazem lições para lidar com a folia hoje

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Tentei parar de beber muitas vezes antes de levar a sério um programa de recuperação. No último ano da ativa, já muito solitária, fui internada mais de quatro vezes, e lembro bem da penúltima recaída.

Fazia uns seis meses que eu estava sem beber, levando uma vida mais ou menos. Nunca quis parar total, queria aprender a controlar a quantidade, o que tornava muito chato aguentar alguns dias-meses-anos sem o álcool, mas acalentando o momento em que eu poderia voltar com controle. Acreditava que se eu passasse um tempo sem beber, saberia lidar com a questão de uma forma melhor.

Máscara, confete e purpina em folia de Carnaval
Eu estava me sentindo bem bonita, mas a agonia seguia quietinha dentro de mim - Pixabay

Lembrei disso quando vi uma fotografia minha fantasiada, sorridente, dessas memórias aleatórias que o celular manda pra gente. Não lembro exatamente como recaí, muitos registros se perdem com a doença. Mas sei exatamente que foi um pós-Carnaval, num mês de fevereiro. Logo depois daquela foto.

Eu sempre gostei de me fantasiar. Naquele ano, decidi enfrentar todas as folias sóbria, com a Martinha, uma amiga muito querida que não bebe nada quando está comigo e que adora Carnaval. Ela faz as fantasias, compra brilhos, tecidos, inventa moda. Tudo pra se divertir.

Naquele ano eu tive vontade de sair pelas ruas e encomendei uma saia de tule rosa, dessas bem de bailarina. Ficou lindíssima. Me acabei de pular e dançar em diversos blocos e festas pela cidade. Quando olho para o sorriso da fotografia, ali sentada no chão, fico imaginando por que raios dois dias depois eu estaria bebendo em casa… Não tem explicação, quer dizer, tem: porque sou alcoólatra.

Mesmo passando todo aquele tempo na folia sem beber, alguma coisa dentro de mim registrava cada bêbado, cada vontade que eu passava, mas fingia não passar. Eu estava me sentindo bem bonita, mas a agonia seguia quietinha dentro de mim. Não beber me deixava pela metade.

Minha irmã não acreditou quando me encontrou na sexta-feira pós-Carnaval completamente bêbada, em casa. Como assim? Você passou todo Carnaval sem uma gota de álcool, com tanta oportunidade para dar uma escapada, e vai recair sozinha no seu quarto?

Pois é, no final, a alegria podia estar estampada no rosto, eu conseguia mentir até para mim que estava tudo bem. Mas não por muito tempo. Aqueles momentos no Carnaval foram se somando. A bem da verdade, é que eu me senti um peixe fora d'água no meio daqueles foliões. Faltava a bebida. Eu não sabia nem onde pôr a mão. A folia custou caro. Uma semana depois, eu entraria na primeira internação daquele ano.

Hoje meu Carnaval é completamente diferente. Continuo adorando me fantasiar, aprecio marchinhas e músicas da época, mas não tenho mais o que fazer por muito tempo em um baile ou festa de Carnaval. A tal "alegria infernal" cantada pelo famoso bloco do Bola Preta, ao qual já fui algumas vezes, no Rio de Janeiro, é apenas infernal mesmo.

Conseguir fazer as coisas sem beber leva tempo e muuuuitas ferramentas das quais só hoje, depois de alguns anos de ajuda coletiva, me sinto capaz. Memórias eufóricas são um perigo e elas vêm sempre. Por isso é preciso se precaver caso elas apareçam. Por exemplo, não posso nunca depender de alguém para ir embora de algum lugar. Se alguma coisa estiver me incomodando, eu preciso correr. Nada pode me abalar a ponto de eu chegar perto de estender a mão para pegar uma bebida.

Estar em recuperação é viver em mudanças. No começo, eu não chegava nem perto de música de Carnaval, hoje consigo ir, ficar um pouco e depois vazar. Mas tem algumas regras. Preciso ir bem alimentada, levo doce na bolsa, chocolate. E não vou a um evento pela manhã. Porque nessa época do ano é liberado beber nesse período do dia, só que a grande maioria só bebe de manhã no Carnaval. Eu não, eu não saio daquela ala dos Inimigos do Fim.

Tem um esquete do Porta dos Fundos em que o personagem do Gregório Duvivier pula por meses em bloquinhos e só descobre que não é mais Carnaval em maio, em Vitória, no Espírito Santo. Partiu do Rio e foi emendando. É engraçado, mesmo porque tem mesmo Carnaval o ano inteiro, quem estiver interessado basta ir atrás. Mas eu não posso mais ser essa foliã perdida no tempo e espaço. Como dizem em sala de AA, bêbado não pode sair sem destino. Precisa ter lugar de ida, rota de fuga e lugar de chegada.

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