Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

Vidas Atípicas - Johanna Nublat
Johanna Nublat
Descrição de chapéu autismo

A dor do abandono na maternidade atípica

A jornalista Debora Saueressig usa as redes sociais para desmanchar a imagem da 'mãe guerreira' e para cobrar políticas públicas

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Johanna Nublat

A jornalista Debora Saueressig, 46, coordenadora do Instituto Lagarta Vira Pupa e mãe de uma criança autista, é presença frequente nos perfis sobre autismo nas redes sociais. Seus textos, sobretudo aqueles que falam sobre a maternidade atípica, são muito compartilhados por outras mães que nem sempre conseguem traduzir em palavras o que sentem sobre as experiências que vivem no cotidiano.

"Estamos escondidas atrás do papel de guerreiras, de incansáveis, de mães azuis, de mulheres que não desistem jamais. Temos nosso amor e devoção colocados à prova diariamente e este personagem nem sempre corresponde à realidade", conta ela em entrevista ao blog.

Às vésperas do Dia Mundial da Conscientização do Autismo, a ser celebrado na terça-feira (2), Saueressig alerta que é preciso falar sobre um tema vastamente ignorado: o abandono das mulheres cuidadoras de crianças, adolescentes e adultos neuroatípicos, um abandono que também vem das políticas públicas.

"A aldeia, infelizmente, na maternidade atípica, é reduzida ao papel da mãe, e nós sucumbimos. Não raro."

Mulher e filho pequeno olham um para o outro
Debora Saueressig e seu filho Benjamin - Arquivo pessoal

Você foi mãe de uma criança típica antes de ser mãe de uma atípica. Em que essas maternidades são diferentes? São absolutamente diferentes, mas são também iguais naquilo que realmente fica e importa. O amor. Fui mãe do Theodoro, hoje com 16 anos, aos 30, enquanto me encontrava profissional e pessoalmente e ele foi determinante para que eu soubesse quem sou. Onze anos depois, em outra relação, e com quase 42 anos, me tornei mãe do Benjamin. Eu era outra. Desde que ele era muito bebê, soube que também estava diante de um bebê diferente. Costumam dizer que cada filho é um filho único e que nunca temos filhos. Somos sempre a mãe daquele filho único. Eu vivi e vivo isso de maneira muito profunda. Meus dois filhos únicos me deram experiências de maternagem muito diferentes.

O que é o autismo para você? Hoje, e cada vez mais, é uma experiência de existir diferente. Um olhar para o tempo, as pessoas, as experiências e sensações muito distinto e único. Isso hoje, com meu filho com quase seis anos. Já foi um medo. Um mistério. Um pavor. Uma impotência. Uma insegurança. Antes do nascimento do Benjamin era algo que jamais fez parte de qualquer momento da minha vida. Infelizmente. Eu não sabia nada. Era uma completa ignorante no tema.

Por que você insiste em falar no adoecimento das mulheres que vivem a maternidade atípica? Porque somos nós que estamos na rotina, no cotidiano, no dia a dia. Porque somos nós que estamos nas salas de espera. Porque somos nós que estamos buscando o direito à escola. Porque somos nós que ficamos quando todos, inclusive os pais, desaparecem. Porque atrás de uma mãe adoecida há um filho fragilizado, necessariamente. A aldeia, infelizmente, na maternidade atípica, é reduzida ao papel da mãe, e nós sucumbimos. Não raro. O nível de estresse experimentado por mães de pessoas com TEA (Transtorno do Espectro do Autismo), por exemplo, assemelha-se ao estresse crônico apresentado por soldados combatentes, segundo um estudo feito com famílias norte-americanas e divulgado no "Journal of Autism and Developmental Disorders". Um outro estudo conduzido pela Universidade da Califórnia e publicado na revista "Family Process" mostrou que as taxas de depressão em mães de crianças autistas eram absurdamente altas: enquanto 50% delas apresentavam níveis elevados de sintomas depressivos durante um período de 18 meses, esse número estava entre 6% e 13% para mães cujos filhos tinham desenvolvimento típico. Estamos escondidas atrás do papel de guerreiras, de incansáveis, de mães azuis, de mulheres que não desistem jamais. Temos nosso amor e devoção colocados à prova diariamente e este personagem nem sempre corresponde à realidade. É preciso que a gente possa discutir abertamente nossas feridas, cicatrizes, mazelas, sobrecargas.

É algo solucionável no curto, no médio ou no longo prazos? Ou nunca? Preciso acreditar que sim, trabalho para isso "dioturnamente", dentro de mim e no meu entorno. Precisamos desmistificar a heroína e dar lugar à mãe possível.

Quais são os caminhos imediatos? Falar. Criar espaços de escuta, convivência, gerar conteúdos que não caibam no espaço da vida ideal e aceitem que temos falhas, cansamos, nos exaurimos, nos devastamos. A maternidade atípica é bastante desafiadora, e fugir deste tema é muito prejudicial à vida das mães e mulheres que somos. Precisamos de políticas públicas que tenham como alvo as mães de crianças atípicas, políticas nas áreas da educação, da saúde e da assistência social. Grupos de acolhimento terapêutico, por exemplo, para que seja possível falar sem julgamentos, sem olhares enviesados, sem que a gente se sinta pressionada a ser a mãe que esperam. É algo relativamente simples de ser organizado, em termos de rede, mas que não existe, pois não há olhar para a questão do adoecimento das mães. Nesse sentido, criamos o Instituto Colo de Mãe, um projeto de acolhimento à maternidade atípica. Surgiu da necessidade de oferecer suporte terapêutico às mães vulneráveis social e emocionalmente. Tem cerca de dois anos e foi idealizado por mim e pela Roberta Vargas, mãe do Theodoro, de nove anos e autista nível 3 de suporte. Realiza encontros, palestras, presta consultorias para empresas, escolas e clínicas. É um movimento pequeno, do tamanho das nossas possibilidades, mas que tem gerado um impacto importante.

O que mais te impressiona nos relatos de mães que chegam para você? A vontade de morrer. De desaparecer. O tamanho da culpa e da vergonha. O quanto profissionais da saúde, da educação e a indústria da cultura e da comunicação ainda nos penalizam, punem, julgam e inviabilizam como indivíduos. Mães que me escrevem, dezenas todos os dias, há anos, estão, em sua imensa maioria, moídas pela rotina, exaustas, sem desejo de viver. Há exceções, claro, há mulheres que encontraram propósitos lindos na maternidade atípica, que continuam com suas vidas laborais, com seus planos e apetites, mas a maioria não. É disso que precisamos tratar, enquanto sociedade, dessa dor do abandono.

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