Vidas Atípicas

Em busca de respostas para dúvidas profundas e inesgotáveis sobre o autismo

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Johanna Nublat
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Entre a mãe geladeira e a que afronta os direitos humanos do filho

Dossiê sobre tratamentos de autismo entregue para nova ministra gera críticas

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Johanna Nublat

Se eu tivesse vivido nos anos 1940, eu poderia ter sido chamada de "mãe geladeira". Naquela época, todos — incluindo os profissionais de saúde — acreditavam que crianças "normais" viravam autistas porque tinham pais — leia-se "mães" — pouco afetuosos e engajados.

Já hoje eu poderia ser acusada de ser uma mãe que viola gravemente os direitos humanos do meu filho.

Na noite de terça-feira (10), três associações ligadas às causas do autismo e de pessoas com deficiência entregaram à nova ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, durante um evento promovido pelo Ministério da Educação, um dossiê em que chamam atenção para o que classificam como "forma moderna de regime manicomial" e uma "grave violação aos direitos humanos": "a prática do excesso de horas de terapia imposta a pessoas autistas no Brasil, particularmente quando essas terapias são baseadas em métodos como a Análise do Comportamento Aplicada (ABA)".

BELFORD ROXO, RJ, BRASIL, 12-09-2024: A Ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Macaé Evaristo, durante Cerimônia de Lançamento da Rede Alyne de Cuidado Integral às Gestantes e Bebês, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, POLÍTICA) ORG XMIT: PRESIDENTE LULA RJ

O dossiê virou rastilho de pólvora nas redes sociais e provocou uma onda de críticas de outras associações, pesquisadores de universidades, autistas e familiares de autistas de maior nível de suporte que, com frequência, não conseguem se posicionar diretamente no debate público.

Os que criticam o documento entregue à ministra alertam para o risco de retrocesso no acesso a terapias com base em evidência científica (já muito restrito no país), o risco de que planos de saúde usem tal dossiê para ampliar as negativas à cobertura do tratamento para autistas, e o risco de tal opinião impactar as (poucas) políticas públicas efetivas que temos no Brasil.

Segundo o CDC americano (o Centro de Controle e Prevenção de Doenças), as abordagens comportamentais são as que têm mais evidência para tratar sintomas do TEA (o Transtorno do Espectro Autista). "Elas se tornaram amplamente aceitas entre educadores e profissionais da saúde, e são usadas em muitas escolas e clínicas de tratamento. Um tratamento comportamental notável para pessoas com TEA é chamado de análise aplicada do comportamento (ABA). A ABA encoraja comportamentos desejáveis e desencoraja comportamentos indesejáveis para melhorar uma variedade de habilidades. O processo é monitorado e medido", explica o CDC em seu site.

Os tratamentos recomendados costumam ser intensivos porque podem lidar com atrasos e descompassos em múltiplas áreas: linguagem, habilidades sociais, regulação emocional, autonomia para vida diária, comportamentos auto ou hetero lesivos, motores e cognitivos. Envolvem, assim, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, entre outros.

A experiência mostra que, pelo SUS, autistas podem ter acesso a uma variedade de tratamentos, poucas vezes baseados em evidência científica e quase nunca se aproximando da intensidade necessária. Na rede privada, a realidade não se mostra tão diferente assim.

A denúncia entregue à ministra fala de casos de mais de 60 horas semanais de terapia. O que temos de pesquisa mostra uma realidade diferente. O Mapa Autismo Brasil, em seu piloto feito no Distrito Federal e que ouviu autistas e cuidadores que usavam o SUS e os planos de saúde, mostrou que os que faziam até cinco horas semanais de terapia eram 46,1% dos ouvidos, enquanto os que tinham acesso aos cuidados de cinco a dez horas semanais representavam 14%, e os pacientes que faziam mais de dez horas de terapia por semana eram apenas 14,8%.

É necessária, sim, a cobrança por práticas que respeitem os direitos humanos dos pacientes. Mas também que sejam baseadas em evidência científica, feitas por terapeutas que sejam bem formados e atualizados. Também é preciso mais acesso a terapias adequadas, clínicas indicadas por planos de saúde que sejam de qualidade, mães e pais engajados e empoderados, e uma regulamentação da profissão de analista do comportamento (como é feito nos Estados Unidos, por exemplo).

Pelos debates exaltados que vemos neste caso e em outro recente envolvendo o parecer 50 do Conselho Nacional de Educação — que criou uma cisão entre atores semelhantes —, também é preciso garantir espaço para um debate mais democrático sobre quais políticas para autistas queremos no país. Mais conversa e menos acusação. Essa não pode virar a era das mães que maltratam os filhos.

O blog procurou o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, mas ainda não teve retorno.

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