Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Colorado realiza referendo sobre cogumelos 'mágicos' em novembro

Eleitores do estado americano decidem se psilocibina será dada sem prescrição médica

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São Paulo

Brasileiros decidirão domingo o futuro do país, ou se ele terá um futuro. Nove dias depois, será a vez dos eleitores do Colorado (centro dos EUA) darem seu voto sobre uma lei que poderá mudar a percepção pública dos psicodélicos e selar o destino de benefícios que possam trazer para a saúde mental.

Os Estados Unidos e o Brasil, em particular, andam muito necessitados de alternativas para fazer frente à epidemia de depressão e ansiedade desencadeada pela ascensão da extrema direita e pela maneira desumana com que Donald Trump e Jair Bolsonaro trataram a pandemia.

Grande quantidade de cogumelos multicoloridos
Ilustração de Raphael Egel - Arquivo Pessoal

A diferença é que lá governos locais e estaduais dão passos para regulamentar o uso adulto de cogumelos "mágicos", depois da maconha. Aqui, bolsonaristas no controle do Conselho Federal de Medicina tentam limitar o acesso até ao canabidiol (CDB), que nem dá barato, mas alivia o sofrimento de muita gente.

O referendo tem por objeto a Proposição 122, que guarda semelhanças com a Medida 109 aprovada em 2020 em Oregon, mas busca ir além. Como no estado do noroeste, no Colorado estará em votação a psilocibina, psicoativo de cogumelos "mágicos" Psilocybe.

A droga presente nos fungos passaria então a ser administrados a maiores de 21 anos em centros autorizados, por facilitadores licenciados, sem necessidade de receita de um profissional de saúde. Seria uma alternativa ao modelo médico dominante, que elegeu a via dos testes clínicos randomizados (RCTs, em inglês) para obter licença da agência de fármacos FDA e, em caso de sucesso, aplicar psicodélicos só em psicoterapia, custeados por seguros de saúde.

As diferenças com o processo de Oregon começam pelo nome. Enquanto lá o referendo introduziu a Lei de Serviços de Psilocibina, no Colorado a legislação, uma vez aprovada, se chamará Lei de Saúde e Medicina Natural (NMHA, para encurtar, em inglês).

Fac-símile do texto de abertura da Proposição 122 em referendo no Colorado
Fac-símile do texto de abertura da Proposição 122 em referendo no Colorado - Reprodução

A psilocibina é só o começo. Em junho de 2026 o estado decidirá se inclui na lei outras substâncias psicodélicas, como dimetiltriptamina (DMT, presente na ayahuasca), ibogaína e mescalina –mas não o cacto peiote, da qual esta pode ser extraída; a exclusão é defendida por povos indígenas preocupados com a extinção da planta, que pode levar uma década para amadurecer.

O prazo para a NMHA entrar em vigor é um pouco menor. Em lugar de dois anos, como em Oregon (ou seja, janeiro de 2023), isso poderá ocorrer em até 21 meses, o mais tardar em 30 de setembro de 2024.

Por fim, a NMHA, caso aprovada, descriminalizará de imediato a posse e a produção dessas substâncias. E não só para consumo pessoal: nenhuma pessoa poderá ser presa ou processada criminalmente se detiver quantidades necessárias para compartilhar com amigos e conhecidos. Não sendo para venda, fica liberado.

Tanta liberalidade pode surpreender brasileiros aprisionados na pauta retrógrada de costumes, mas o povo do Colorado já deu mostras de que não cai mais no conto do vigário (ou pastor) proibicionista. Em 2012, tornou-se um dos primeiros estados a autorizar o uso adulto de maconha, ao lado de Washington, no noroeste.

Ilustração com muitas folhas de maconha
Ilustração de Raphael Egel - Arquivo Pessoal

No entanto, o movimento pela descriminalização de psicodélicos está dividido. Organizações como Decrim Nature e Spore recomendam votar "não" à NMHA, alegando que as exigências para licença de facilitador ou para abrir um "centro de cura" favorecerão grandes corporações, como aconteceu no caso da cânabis.

Criticam, além disso, a estipulação de um limite para a posse individual, ainda que vago ("quantidade necessária para compartilhar"). Isso ainda deixaria a porta aberta para autoridades decidirem quanto isso representa, preservando-lhes o poder arbitrário de processar criminalmente algumas pessoas.

Aquelas organizações favoreciam uma proposta legislativa mais ousada, de descriminalização total, a Iniciativa 61. Não foram, porém, capazes de reunir todas as assinaturas para que ela entrasse na cédula de votação em 8 de novembro.

Para os defensores da NMHA, tal orientação de voto é um contra-senso. Se for seguida pelos eleitores, qualquer posse de psicodélicos no Colorado continuará resultando em prisões, bem o oposto do que se pretende.

Também acusam os libertários de omitir que a proposta em referendo impediria empresários de possuir mais que cinco centros de psilocibina. A barreira foi projetada para deter o assalto corporativo, mas é verdade que a restrição no texto se dirige só a "indivíduos", sem explicitar empresas que planejem entrar no mercado do Colorado com múltiplas filiais.

Na conferência Horizons Northwest, realizada em setembro na cidade de Portland para debater o modelo de Oregon, oradores familiarizados com a campanha da NMHA diziam que ela tende a ser aprovada. Ela traz avanços sobre a Lei de Serviços de Psilocibina de Oregon, por exemplo ao estabelecer que haverá taxas de licença customizadas para facilitadores e curandeiros tradicionais em comunidades de baixa renda.

Os aperfeiçoamentos resultam da experiência acumulada no processo de regulamentação em Oregon. A Califórnia ensaiou descriminalizar psicodélicos com um projeto de lei no Senado estadual, mas ele saiu da pauta em março. Em Connecticut, o governo lançou programa piloto para dar psilocibina ou MDMA para veteranos de guerra.

Várias cidades já procederam à descriminalização menos ou mais liberais de psicodélicos, como as californianas Oakland, São Francisco e Santa Cruz, além de Denver, Cambridge, Ann Arbor, Detroit, Seattle e mesmo Washington, DC. Ainda que em velocidades diversas, setores importantes dos EUA –apesar de Trump e da metade do país que o apoia– negociam um armistício na Guerra às Drogas, que em meio século só colheu fracassos.

Enquanto isso, no Brasil, a discussão sobre saúde mental só tem lugar para o que passa pela cabeça de Jair Bolsonaro, Damares Alves e Roberto Jefferson.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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