Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Oregon na reta final para autorizar psilocibina de cogumelos

Apesar de entraves burocráticos, uso controlado do psicodélico estreia em 2023

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São Paulo
Ilustração psicodélica rebuscada em preto, branco e azul
Ilustração - Raphael Egel

Foram quatro dias intensos no Museu de Arte de Portland, Oregon. De 15 a 18 de setembro, cerca de 900 pessoas acompanharam a primeira conferência psicodélica Horizons fora de Nova York, a Horizons Northwest, interessadas no pioneirismo desse estado do noroeste dos EUA com o uso controlado da psilocibina de cogumelos ditos "mágicos", que deve começar em meados do ano que vem.

O modelo de Oregon para descriminalizar o psicodélico difere tanto da via trilhada pela cannabis medicinal, com seus dispensários e receitas médicas, quanto da favorecida por pesquisadores, empresas e outros militantes do renascimento psicodélico. Estes pretendem ver substâncias alteradoras da consciência aprovadas pela agência de fármacos FDA como adjuvantes de psicoterapia custeada por seguros de saúde.

A psilocibina vem sendo estudada para tratar transtornos mentais, depressão à frente, com testes clínicos de fase 3 em preparação. Outra área promissora é a de dependência química, como no caso do álcool. Ao lado de MDMA (base do ecstasy) para estresse pós-traumático, é o psicodélico mais avançado na via oficial para aprovação de fármacos, que pode consumir vários anos e dezenas de milhões de dólares.

A maioria dos eleitores de Oregon, com 1,3 milhão de votos (56%), aprovou em novembro de 2020 a Medida 109, para estabelecer "serviços de psilocibina" no prazo de dois anos. Criou-se uma comissão consultiva para propor à Autoridade de Saúde de Oregon (OHA, em inglês) uma regulamentação, que se encontra em fase final de consulta pública para adoção em dezembro.

A psilocibina, ou 'cogumelos mágicos', recebeu uma permissão dos EUA para pesquisa clínica para usos médicos
Cogumelos 'mágicos' do gênero Psilocybe, que contêm o psicodélico psilocibina - Getty Images/BBC News Brasil

Restam muitos detalhes por definir, mas o esquema geral já está claro. Pessoas com mais de 21 anos poderão receber doses da ordem de 20 a 30 mg ministradas por um "facilitador" licenciado após cumprir 120 horas de treinamento em cursos credenciados (exige-se só que sejam residentes em Oregon há dois anos e tenham ensino médio completo).

Apenas uma espécie de cogumelo contendo psilocibina, Psilocybe cubensis, poderá ser usada (existem mais de 200 que produzem o psicodélico). As instalações de produção dos fungos também têm de ser licenciadas, e todas as amostras serão testadas geneticamente por laboratórios autorizados.

"Essa terapia é impressionante", elogiou no auditório do museu o deputado Earl Blumenauer, 74, representante de Oregon na Câmara dos EUA. "Abre-se uma nova era no estado, com grande potencial de impacto. É uma fundação sobre a qual se pode construir."

"Sinto [que temos] muito de uma comunidade aqui", disse Tom Eckert, um dos idealizadores da 109 --ao lado da mulher Sheri, que morreu em 2020, semanas depois de ver aprovada a medida. "Ombro a ombro, olhando para o horizonte. Nossa visão não era de estatutos ou regulamentação, mas de pessoas."

"Uma revolução impressionante", afirmou no evento Bia Labate, antropóloga brasileira que fundou e dirige o Instituto Chacruna, responsável por portais sobre plantas de poder em inglês e em português e espanhol. "O quê? Produtos de psilocibina?", disse, esfregando os olhos para sinalizar surpresa com o ritmo da regulamentação de substâncias usadas, afinal, há séculos ou milênios por populaçõess tradicionais.

Para abreviar o acesso aos cogumelos para quem sofre, hoje, a 109 propõe tirá-los do controle rígido pelo estamento clínico. Xamãs, curandeiros, naturopatas ou qualquer pessoa poderão administrar a psilocibina sem prescrição médica, desde que o façam numa instalação licenciada com produto idem, rastreável. Só não será permitido chamar as sessões de "(psico)terapia".

Daí a preferência da nova regulamentação por termos genéricos como "facilitadores" (em vez de terapeutas) e "serviços" (em lugar de tratamentos). Serão exigidas, contudo, sessões de "preparação" e "integração" antes e depois da de dosagem, um vocabulário oriundo justamente dos protocolos de psicoterapia apoiada por psicodélicos em investigação por instituições acadêmicas, o que pode dar margem a incompreensão no público.

O zelo em evitar que os serviços de psilocibina se confundam com terapia é tanto que a minuta das regras impede psicólogos e médicos de se apresentarem como tais, caso venham a atuar como facilitadores. Precisarão fazer o curso regulamentar, como qualquer um com diploma secundário, e só poderão dar a psilocibina a "clientes" (não pacientes) em instalações aprovadas.

Nos debates da Horizons NW, ficou patente que muitos consideram a regulamentação excessivamente burocrática e artificial. Angie Albee, que lidera a força-tarefa da OHA para os serviços de psilocibina, avalia que esse é o preço a pagar pela prioridade dada à segurança de quem se tratar com os cogumelos.

Para além de segurança e acesso precoce aos benefícios mentais dos cogumelos, a 109 também dá ênfase aparente à equidade. Ou seja, pretende fazer com que tanto a substância quanto a autorização para administrá-la aos interessados fique acessível para muitos, de forma legal (sempre houve quem a aplicasse de forma clandestina; a psilocibina é objeto de proibição federal), e não só a profissionais bem remunerados da área médica.

Vem daí outro problema debatido no evento, os custos. A taxa para obter uma licença de facilitador custará US$ 2.000. Para licenciar um local de produção, teste ou aplicação, cada empreendedor terá de desembolsar US$ 10.000. Os valores foram estabelecidos com base no orçamento da OHA, que tem de ser coberto com recursos próprios.

Com isso, estima-se que cada tratamento de três sessões para usar psilocibina numa delas venha a custar entre US$ 1.500 e US$ 2.000. Considerando que a despesa não será coberta por seguros de saúde enquanto não cair a proibição federal, o "serviço" não estará ao alcance da maioria dos cidadãos –que de resto terão dificuldade de entender por que isso não é uma terapia e não pode ser pago pelas seguradoras.

Preocupado com os altos custos, Tom Eckert criou uma fundação com o nome da mulher falecida para oferecer bolsas a facilitadores que não consigam pagar cursos de treinamento (como o da empresa Inner Trek aberta por ele). Também se buscam maneiras de auxiliar empreendedores no pagamento das taxas para licenciar instalações de aplicação, produção e teste de cogumelos.

Apesar das dificuldades, predominou na Horizons um tom de otimismo. Graham Boyd, da New Approach, iniciativa de apoio a propostas populares para descriminalizar cannabis e psicodélicos, previu que em cinco anos até 50% da população norte-americana poderá já ter acesso a MDMA para tratamento, e talvez psilocibina.

Boyd recomendou manter registro detalhado tanto de sucessos quanto de casos adversos nos serviços de psilocibina. A ideia é poder mostrar depois, com fatos e números, que os problemas são raros e os benefícios, abundantes –como ocorreu com a maconha medicinal. Pesquisadores como Robin Carhart-Harris e Brian Anderson também recomendaram dar atenção e transparência para a questão dos riscos, por infrequentes que sejam.

Em realidade, o aprendizado com a experiência em Oregon já começou, antes mesmo de entrar em pleno vigor (os pedidos de licença começarão a ser analisados em janeiro e se prevê que os primeiros serviços sejam autorizados em meados de 2023). Em 8 de novembro, o estado do Colorado votará o projeto Saúde e Medicina Natural (NMHA, em inglês), que traz algumas novidades sobre a M109.

Entre outras inovações, a proposta legislativa inclui descriminalizar de imediato posse e cultivo de quantidades pequenas de psicodélicos naturais como DMT, psilocibina, ibogaína e mescalina (exceto o cacto peiote), para uso pessoal ou doação. Serviços regulamentados começariam com psilocibina, como em Oregon, mas se prevê a extensão para esses outros enteógenos e a criação de fundos para custear licenças e consumo dessas substâncias para pessoas de baixa renda.

Até o governo federal dos EUA começa a dar sinais de interesse nas terapias psicodélicas. O país, como tantos outros nestes tempos de Covid, Guerra Fria requentada e precarização de trabalho e renda, enfrenta uma crise de saúde mental sem solução à vista pelas vias clínicas e farmacológicas dominantes.

Uma nova era, com efeito, parece estar começando por Oregon. Pode não ser a de Aquarius, que os hippies dos anos 1960/70 tentaram iniciar na marra pulando fora do sistema, mas quem sabe a Era Cubensis, um armistício na fracassada Guerra às Drogas obtido pela via bem-comportada dos referendos de iniciativa popular.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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